20 dezembro 2022

maurice blanchot / não tinha inimigos

 
 
 
Não tinha inimigos, não era incomodado por ninguém. Por vezes criava-se uma vasta solidão na minha cabeça onde o mundo inteiro desaparecia, voltando a sair intacto, sem um arranhão, sem nada em falta. Quase perdi a visão quando alguém esmagou vidro nos meus olhos. Reconheço que esse golpe me abalou. Senti que estava a penetrar o muro, a deambular num arbusto de sílex. O pior foi a brusca e chocante crueldade do dia – não podia olhar nem deixar de olhar. Ver era aterrador, deixar de ver dilacerava-me da testa à garganta. Para além disso, ouvia gritos de hiena, o que me expôs à ameaça de um animal selvagem (esses gritos, acredito, eram os meus).
 
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021




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