25 dezembro 2022

s. kierkegaard / como me senti estranhamente melancólico

 



 
Como me senti estranhamente melancólico ao ver um pobre homem arrastar-se pelas ruas num sobretudo muito gasto, verde-claro, para o amarelado! Deu-me pena dele. Mas o que mais me comoveu, no entanto, foi que essa mesma cor do sobretudo tão vivamente me recordou as minhas primeiras criações de criança na nobre arte da pintura. Esta era precisamente uma das minhas cores preferidas. Não é mesmo triste que estas misturas de cores, em que ainda penso com tanta alegria, não se encontrem em parte nenhuma na vida? Toda a gente as acha berrantes, garridas, a empregar apenas nas figuras de Nuremberga. Se alguma vez, nos deparamos com elas, o encontro será sempre tão infeliz como este agora. Tem sempre de ser um fraco de espírito ou um desgraçado, em resumo, sempre alguém que se sente um estranho na vida e que o mundo não quer reconhecer. E eu que sempre pintei as vestes dos meus heróis com pinceladas deste verde amarelado eternamente inesquecível! Não acontece o mesmo com todas as misturas de cores da infância? O brilho que a vida então tinha torna-se pouco a pouco demasiado forte, demasiado berrante para o nosso olhar esvaído.
 
 
s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 





1 comentário:

Porventura escrevo disse...

Desconhecia a faceta de poeta de um filósofo tão marcante