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24 janeiro 2024

robert desnos / boa noite a todos

 




 
– Deitado na tua cama
Entre os teus lençóis,
Como uma carta no envelope,
Imaginas que te vais embora
Para uma longa viagem.
 
–  Claro que não, não imagino nada.
Não nasci ontem
Conheço o sono e os seus mistérios
Conheço a noite e as suas trevas
E durmo tal como vivo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




18 outubro 2023

robert desnos / terra

 
 
 
Dia após dia,
Uma onda atrás de outra.
Aonde vais? Aonde vão?
Terra assassinada por tantos homens errantes!
Terra enriquecida pelos cadáveres de tantos
                                                       homens.
Mas a terra somos nós,
Não estamos em cima dela
Mas nela, desde sempre.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 

04 junho 2023

robert desnos / conto de fadas

 
 
Era uma vez muitas vezes
Um homem que amava uma mulher
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher que amava um homem
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher e um homem
Que não amavam aquele e aquela que os
                                                                  amavam
Era uma vez
Talvez uma vez apenas
Uma mulher e um homem que se amavam
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022




14 março 2023

robert desnos / cruzamento

 
 
 
Há neste cruzamento uma atmosfera de
recordações, de reencontros, de factos
estranhos absurdos e importantíssimos
O laranja e o verde florescem nas vitrinas do
                                              farmacêutico
As inscrições em esmalte lêem-se nos vidros
                                                      do café
A canção do transeunte é a mesma em todo
                                                        o lado
O candeeiro é o mesmo
As casas são parecidas com tantas outras
A mesma calçada
Os mesmos passeios
O mesmo céu
E no entanto muitos param neste lugar
Muitos parecem encontrar nele o odor do seu
                                              próprio corpo
E o perfume de amores volvidos
Irremediavelmente mergulhados num
                                esquecimento tortuoso.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




15 dezembro 2022

robert desnos / às cinco horas

  
 
Às cinco horas da manhã numa rua nova
e vazia ouço o ruído de um carro a afastar-se.
Um alarme de incêndio tem o vidro partido
e os pedaços resplandecem na valeta.
Na calçada está uma poça de sangue
e uma ligeira fumaça dissolve-se no ar.
Olá! Olá! Contem-me o que se passou.
Acordem! Quero saber o que se passou.
Contem-me as aventuras dos homens.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




11 outubro 2022

robert desnos / literatura



 

Hoje gostaria de escrever uns versos bonitos
Tal como aqueles que lia quando andava na
                                                         escola
Isso às vezes punha-me os sonhos do avesso
Também é possível que eu seja um pouco
                                                           louco
 
Mas contar todas estas palavras acoplar estas
                                                         sílabas
Parece-me um trabalho fastidioso de formiga
Perderia nisso o meu latim o meu chinês o
                                                    meu árabe
E até o sono meu prestável amigo
 
Escreverei então como falo e será uma pena
Se algum gramático surgido da penumbra
Quiser condenar-me com cólera e desprezo
Há outra ciência onde posso confundi-lo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022


 


07 julho 2021

robert desnos / sonhei tanto contigo

 
 
 
Sonhei tanto contigo que vais perdendo realidade.
 
Irei ainda a tempo de alcançar esse corpo vivo e de beijar nessa boca o nascimento da voz que me é querida?
 
Sonhei tanto contigo que os braços habituados, sempre que abraçam a tua sombra a cruzarem-se-me sobre o peito, talvez nunca mais encaixem nos contornos do teu corpo.
 
E, perante a aparência real do que me assombra e me governa, desde há muitos dias e anos, talvez eu me venha também a tornar sobra.
 
Ó balanças sentimentais!
 
Sonhei tanto contigo que talvez já não vá a tempo de acordar. Durmo de pé, com o corpo exposto a todas as aparências da via e do amor, e tu, a única de todas que hoje conta para mim, posso menos tocar a tua testa e os teus lábios do que os primeiros lábios e a primeira testa que por aí apareçam.
 
Sonhei tanto contigo, caminhei tanto, falei tanto, dormi tanto com o teu fantasma, que só me resta talvez, e todavia, ser fantasma entre fantasmas, e cem vezes mais sombra do que a sombra que passeia e passeará alegremente pelo relógio de sol da tua vida.
 
 
 
robert desnos
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021