03 setembro 2022

mário de sá-carneiro / eu não sou eu nem sou o outro

 
 
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
          Pilar da ponte de tédio
          Que vai de mim para o Outro.
 
 
 
mário de sá-carneiro
mário soares, os poemas da minha vida
público
2005






 

02 setembro 2022

leopoldo alas / o tempo nos olhos

 
 
Não é o tempo o que me preocupa ter perdido
quanto os olhos que tive, limpos. E o cheiro do mar,
um rumor de vozes, a praia que sem saber porquê
me figuro intensa (mesmo sabendo que já então
era incómoda a areia e que queimava).
E lamento ainda mais que tudo aquilo que nunca sucedesse,
que tantos dias quanto suponho que vivi não existam,
nem sequer na memória. Porque não posso lembrar-me
de nada. e é inútil evocar a imagem de sempre:
areia muito fina que se escapa entre os dedos da mão.
Porque é mais triste que uma imagem que se escape o tempo
e que, farto de demónios, o teu olhar se apague.
E o cheiro do mar, um rumor de vozes, a praia…
 
 
 
leopoldo alas
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





 

01 setembro 2022

paul bowles / mensagem

 
 
Ninguém gritou no Verão
Os dias eram quartos quentes
Pelos irrespiráveis corredores das noites
Um dragão atravessou as pontes do som
Com o brilho das suas escamas e arrastando a cauda
Através dos soluçantes parques, assustando os ratos
 
Tropeçando desceu as ruas e afastou-se da colina
O seu riso percorreu e serpenteante rio
Todas as cúpulas da cidade estremeceram no seu alabastro
E junto às árvores dos subúrbios do sul
As ervas mais secas quebraram-se e enrugaram-se
 
 
                                                         1929
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



31 agosto 2022

joão pedro grabato dias / quero explicar-lhes

 



 
Quero explicar-lhes, Venho a explicar-lhes
a técnica minuciosa de não chorar certas lágrimas
o código das mil pequeninas astúcias serenas
os concretos maneirismos viúvos que resultam nesta
petrificada imobilidade, nesta insónia alheada
de fazer medo aos amigos, a decompor-lhes os mil modos
correctos de hibernar em estátua passante,
desmontar-lhes, preciso, o sangrento teor das rodas
dentadas no indizível terror de aqui estar
de não ver o fim, de temer qualquer fim que seja
dar-vos o controlo total pleno do pânico
mergulhar convosco, amigos, inimigos, ó queridos indiferentes
na engrenagem particularmente ambígua da mágoa
no furor coalhado, represado, nos humores vítreos
deste mecanismo de névoa doce e parada
neste extensíssimo vale de ecos contraditórios
neste punho fechado sobre o grito inevitável
nesta preciosa pérola irisada de nunca mais nunca mais
neste gérmen pequeníssimo, neste átomo, neste
nada de nenhures, nesta ausência de tantos futuros possíveis.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021



 

 


30 agosto 2022

marin sorescu / à ícaro

 
 
Fui pedir esmola às aves
E cada uma deu-me
Uma pena.
 
Uma era alta, a da águia,
Vermelha, a da ave do paraíso,
Verde, a do colibri,
Palradora, a do papagaio,
Medrosa, a da avestruz –
Ah, que asas fiz para mim!
 
Meti-as na minha alma
E comecei a voar.
Voo alto de águia,
Voo vermelho de ave do paraíso,
Voo verde de colibri,
Voo falador de papagaio,
Voo medroso de avestruz –
Ah, como eu voei!
 
 
marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997
 



29 agosto 2022

marianne moore / a um caracol

 
 
Se “a compressão é a graça primordial do estilo”,
esse dom te assiste. Ser contrátil é, tal como
a modéstia, uma virtude.
Não é a aquisição de uma coisa qualquer
para fins decorativos,
ou a qualidade incidental que, circunstancialmente,
advém de algo bem dito,
o que apreciamos no estilo,
mas o princípio oculto:
na ausência de metro, “um método de conclusões”,
“um conhecimento dos princípios”
no curioso fenómeno do teu corno occipital.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018



28 agosto 2022

t. s. eliot / east coker

 
 
I
 
No meu começo está o meu fim. Uma após outra
As casas erguem-se e caem, desmoronam, são aumentadas,
São mudadas, destruídas, restauradas, ou onde estavam
Fica um descampado ou uma fábrica ou um desvio.
De pedra velha a edifício novo, de lenha velha a fogos novos,
De fogos velhos a cinzas e de cinzas à terra
Que é já carne, pele e fezes,
Osso de homem e bicho, haste de trigo e folha.
As casas vivem e morrem: há um tempo para edificar
E um tempo para viver e procriar
E um tempo para o vento quebrar a vidraça solta
E abanar o lambril onde se apressa o rato do campo
E abanar o arrás em farrapos lavrado com uma divisa silenciosa,
 
No meu começo está o meu fim. Agora cai a luz
Ao longo do descampado e deixa a funda vereda
Encoberta por ramos, escura na tarde,
Onde te encostas a um talude enquanto passa uma carroça,
E a funda vereda insiste no rumo
Da povoação, no calor eléctrico
Hipnotizada. Numa névoa quente a luz sufocante
É absorvida, não refractada, por pedra cinzenta.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Espera pela primeira coruja.
 
                                         Neste descampado
Se não te chegares muito, se não te chegares muito,
A meio de uma noite de Verão, podes ouvir a música
Da débil flauta e do pequeno tambor
E vê-los bailar em redor da fogueira
A associação de homem e mulher
Na dança, a significar matrimónio –
Um honroso e conveniente sacramento.
Dois a dois, conjunção necessária
Um e outro de mão dada ou braço dado,
O que é sinal de concórdia. À roda, à roda do fogo,
Ora saltam as labareda ora se juntam círculos,
Rusticamente solenes ou em gargalhada rústica
Erguem os pés pesados dentro de sapatos toscos,
Pés de terra, pés de argila, erguidos em alegria rural
Alegria daqueles há muito debaixo da terra,
Alimento do trigo. A marcar o tempo,
A marcar o ritmo na sua dança
Como nas suas vidas nas estações vivas
O tempo das estações e das constelações
O tempo da ordenha e o tempo da colheita
O tempo do acasalamento de homem e mulher
E o dos bichos. Pés que se erguem e baixam.
Comida e bebida. Esterco e morte.
 
A madrugada desponta e mais um dia
Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da
     madrugada
Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui
Ou ali, ou algures. No meu começo.
 
 
 
t. s. eliot
quatro quartetos
trad. gualter cunha
relógio d`água
2004



27 agosto 2022

philip larkin / erva segada

 
 
A erva segada e frágil:
É breve o sopro
Que os caules ceifados exalam.
Longa, longa a morte.
 
Que ele morre nas horas em branco
Do Junho de folhas tenras
Com flores de castanheiro,
As sebes como de neve espargidas,
 
Lírios brancos curvando-se,
Veredas rendilhadas a flores bravas,
E aquela nuvem acastelada
Movendo-se ao ritmo do Verão.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




 

26 agosto 2022

rosa alice branco / amor cão

 


 

 

                                         À medida que o crepúsculo se aproxima
                                               o pavor da noite começou a pesar
                                               intensamente em todos os espíritos.
 
 


3
O que amam sem reservas é o dia, o dia límpido.
Visível como uma clareira no seio do medo.
O medo é a antecipação do crepúsculo, da paixão
sofrida até ao amanhecer como uma prece infindável
e que venha o dia.
Que se ele viesse as notas seriam como o vento
na urze e a urze da montanha era do mar
cheia de cores salinas e cheiro quente a terra
e ela vestida de branco como quem espera
o vestido esvoaçando para o espanto do primeiro olhar.
Ela ia querer que todos os olhares fossem assim
mas nada se sabe do dia, tão escuro ainda
que só a morte espreita para lá da fogueira onde o frio
é um cisco que se imiscui na paisagem do medo.
O chegar do dia é um noivado. Mesmo que um predador
mate de revés uns quantos, podem olhá-lo no rosto
antes da rapina, das aves que cegam o buraco da noite.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022




25 agosto 2022

rui nunes / podava a macieira

 
 
podava a macieira. Entre folhas, a tesoura
cortava o ar: e o ar caía, arrastando os troncos.
As horas mediam uma recordação imprecisa:
ao campo de neve o sangue coalhara e a manhã
prolongava a morte até à rigidez
de um gesto interrompido:
a mão só alcançara o branco
e no branco adquirira
o sarcasmo de um molde
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




24 agosto 2022

víctor botas / falam da natureza

 
 
Falam da natureza, e que é bela
– dizem sem mais razões –; eu prefiro
falar de um caos, aziago e feroz,
sem ordem nem plano nem outra coisa
além deste cego acaso que nos acossa
a golpes de cachaço. Quero deixar
muito claro nesta página: não espero
do temporal em turbilhão que graciosa-
mente prodigue paz. Serão seus golpes
mais duros se, julgando estar muito bem,
só esperar lisonjas: dura nora
move o ritual do tempo, golpe a golpe.
Há, contudo, instantes, sinais, coisas
que misteriosamente, são belas.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




23 agosto 2022

jorge de sousa braga / memória de luís vaz de camões

 
 
Na autoestrada do norte, de jeans coçadas e óculos escuros, uma longa trança sobre os ombros, rumo às florestas de abetos, a mochila cheia de coisas esquisitas, pássaros mortos, malmequeres de plástico.
 
Na autoestrada do norte, a camisa ainda molhada do naufrágio, a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico.
 
Na autoestrada do norte completamente pedrado.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




22 agosto 2022

josé miguel silva / dois

 
 
Aos sete anos temos sorte, conhecemos a morte
no enterro do vizinho. Cresce o sentido
das responsabilidades. Assim se prepara
a primeira comunhão.
 
Temos agora que cuidar não apenas
dos cadernos e dos lápis mas também
da alma, essa remissa ostra
onde se aloja uma pequena culpa.
 
Torna-se mais longo o caminho para casa
(mas também, confessemos, mais estimulante).
Já não corremos tão depressa com a pesada pasta:
um tropeço qualquer, e lá vem a consciência.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003