08 abril 2022

antónio dacosta / nesse jardim onde pousais

 


 
Nesse jardim onde pousais
Pousei eu
 
Os sinos soavam pesados
Na limpidez da tarde
E havia nos eucaliptos
Uma memória antiga
Um antigo cheiro
 
Passavam as raparigas
Que sabia não serem minhas
 
Doía-me o destino
A sua voz vinda de longe
O seu dedo apontado a mim
 
Elas sabiam
 
 
 
antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994









07 abril 2022

ana paula inácio / querida sophia

 
 
Afinal as mónicas continuam
são as de sempre.
Fazem psicanálise e ioga,
cabeleireiro aos sábados e depilação 2 vezes por mês.
Não têm filhos mas adoptam-nos
como dão guarda aos cães
têm-nos de toda a qualidade
e para qualquer situação:
de cego para quando acordam cedo
e o excesso de luz as perturba;
da pradaria se pretendem preciosidades
raridades escondidas;
de água quando temerariamente mergulham
Quelques centimètres plus fond;
Briard quando precisam de inteligentes
e corajosos ou de pelagem abundante e
algo ondulado como os define
o dicionário Houaiss;
e finalmente de guarda ou de
fila não venha a coisa tornar-se pior.
Por vezes, estes últimos, podem tornar-se pegajosos,
inoportunos, indesejáveis
pelo que recebem o nome de miúdo ou
tinhoso, como o do rabo comprido, o
que também as enfeitiça
por fugir à norma, ao vulgo, ao
tremoço.
São sempre as mónicas
e quando falam ao telemóvel
usam uma voz recortada
como as mitenes da avó
e nunca amanham peixe
ou se amanham é para utilizar
as escamas em quadros florais
dispostos corredor acima.
Ao peixe comem-no cru,
para experimentar outras culturas.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




06 abril 2022

alexandre nave / a dor é um abraço que afoga

 
 
5
 
A roupa estendida a desfeitear rapariga
as mãos delas prendidas nas outras
os olhos em tanques de água,
 
os dedos frios alongados no pátio,
 
saem para a praça vestidas no céu
que vela os mortos, os cabelos
entrelaçados nos beirais da chuva
 
a roupa seca balançada nos olhos
 
 
 
alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003




05 abril 2022

antónio franco alexandre / (trânsito)

 
 
Trabalhador precário, vou-me vestir de nómada
por ser mais alta estirpe e rima cómoda
para assim cantarolar:
 
os pedaços de terra todos têm
o seu pastor e ovelhas a guardar
e é pequena a clareira onde parava
o profeta a ruminar
 
regresso agora se posso
se há casa chão regressar
à cidade fiel é que pertenço
a de todos por igual
 
essa imagem hoje te envio
dos Pirenéus num postal
altas montanhas de neve
e paredes de cristal
 
vais-te rir da rima pobre
mas é pobre o que hoje sou
ali no vale é que fica
o riso bom de ficar
 
nesta fronteira fui homem
contigo me conheci
hoje volto ao calendário:
na noite branca abrigado
a ti só regressarei.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021




 

04 abril 2022

rui diniz / no sul

 
 
No inverno, em Sines, eu podia compor, na solidão
da casa, um súbito esquecimento. Falava de
antónia, lendo os poemas de eugénio e compondo
nos olhos de um castanho nocturno o ágil brilho
do amor. Por vezes ela recordava. Mas eu, a pouco e
pouco, fui até perdendo o significado de muitas das
palavras e simplifiquei assim toda a minha vida.
 
Eu passava agora tardes numa praia afastada, con-
templando o mar cuja áspera agitação
me surpreendia algumas vezes. Bebia à tarde, cansado
dos violentos sepulcros esboçados pelo crepúsculo.
E havia alturas em que ouvia um disco de vivaldi,
um adágio de ellington.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




03 abril 2022

vergílio ferreira / ir ver o mar

 
 
179 – Ir ver o mar. Vê-lo de vez em quando e sempre com a mesma fascinação. Que é que vem dele para assim nos fascinar? A sua força imensa diante da nossa pequenez. O seu mistério visível e inquietante porque é o invisível da sua visibilidade. O irrisório da sua absurda convulsão e o aceno indistinto que vem de trás do horizonte e não sabemos o que é. O aroma a espaço, uma memória confusa de aventura, o sinal presente da sua infinitude ausente, a dilatação de nós a um poder imenso, um certo conluio com Deus.
 
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




02 abril 2022

mário dionísio / se pudéssemos dizer até breve

 
 
43.
Se pudéssemos dizer até breve
quando nos separamos
 
Se pudéssemos partir claro está
que ninguém aqui está sempre perto sempre pronto
para agarrar a palavra
 
Se não houvesse sempre esse lobo atrás da parede
da nossa casa
 
Se prosseguir
não fosse a lei do tempo de paz  não é de paz
que a gente habita
 
 
mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort (1967)
versão portuguesa de regina guimarães
imprensa nacional-casa da moeda
2016




01 abril 2022

roger wolfe / há gente

 
 
Há gente que acredita que está viva
porque lê jornais e faz amor
com a mulher duas vezes por ano, ou por mês
ou por semana,
e toma café com os amigos
e sonha pertencer a alguma máfia.
Há gente que acredita que está viva
porque se levanta todos os ias às seis
da madrugada, para se arrastar para o trabalho,
e fuma um cigarro
e comenta o jogo de ontem
ou o último escândalo político
com os colegas. Há gente
que acredita que está viva porque tem um carro,
um apartamento e duas dúzias
de camisas e uma firme opinião
acerca de quem deveria governar este país.
há gente que acredita que está viva
porque vai tirando cursos por correspondência,
acorre a carimbar a declaração de desemprego,
chuta pr´á veia ou snifa coca ou sai para tomar
um copo ou levar no cu ao fim-de-semana,
vai ao cinema, liga a televisão,
fala ao telefone ou abre uma nova conta bancária.
Há gente que por estas coisas e algumas outras,
– quaisquer umas que queiram –
acredita que está viva e, o que é pior:
que tem algum direito à vida.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 

31 março 2022

vera pavlova / a balança

 
 
Sobre um dos pratos, a alegria.
No outro, a tristeza.
A tristeza é mais pesada.
É por isso que
a alegria é mais alta.
 
 
 
vera pavlova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022




30 março 2022

ruy belo / nada consta

 
 
Falta-me a folha cinco
E entretanto a barba foi crescendo
a minha barba veio crescendo ferozmente
indiferente à morte de um ou outro amigo
às letras protestadas aos desgostos domésticos
às viagens lunares às convenções às lutas
Quando as coisas se erguem contra o homem
se eriçam agressivas contra ele
nem ao poeta basta o parapeito das palavras
Eu por exemplo homem de pouco tempo
trazido pelos dias aqui estou
Continuo a dizer: se alguma coisa há
que podias perder e ainda não perdeste
de que já a perdeste podes estar certo
Falta-me a folha cinco
Estou com a barba feita
Ainda este ano talvez em marienbad
eu vi mulheres curtidas pelos lutos
Mal de morte é o meu
em plena posição de pé às três da tarde
em meio do movimento do rossio
sentado à tarde no cinema em dias de semana
Já caem carnes já se perdem pêlos
já quase só me resta a devoção
lisboa certos dias um amigo às vezes
Poucas coisas importantes pensei durante a vida
uma mesa de sol em pleno inverno
um mar incontroverso alguns papéis
– continua a faltar-me a folha cinco –
pois apesar de tudo nada consta
 
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




29 março 2022

pierre louÿs / o tempo ido que teima em ficar

 
 
LVII
 
Deixarei a cama tal como ela a deixou, desfeita
e em desalinho, os lençóis entrançados num só,
para que a forma do seu corpo continue impressa
ao lado do meu.
 
Até amanhã não irei ao banho, não me vestirei,
nem pentearei o meu cabelo, com medo
de apagar-lhe as carícias.
 
Não comerei esta manhã, nem mesmo à tarde;
não porei carmim nem pó nos lábios,
para que o seu beijo permaneça.
 
Deixarei as portadas das janelas fechadas
e não abrirei a porta, não vá a lembrança
latente partir com o vento que passasse.
 
 
pierre louÿs
o sexo de ler de bilitis
elegias em mitilene
trad. maria gabriel llansol
relógio d´água
2010




28 março 2022

níkos kavvadías / coaliers

 
 
Em terras do canal da Irlanda, em Liverpool, em Swansea
Entre as gruas das docas vê a gente manhã cedo
Uns homens a passar que não têm ar de marinheiros
Mas seguem para os barcos em descuidado folguedo.
 
Cinco ou seis braças têm os barcos e tão parecidos
Que muita vez se cansam a procura-los no cais
Altas proas pesqueiras, chaminés pontiagudas,
E suas fainas duram uma semana, não mais.
 
Trazem vestidas calças por passar enxovalhadas,
E camisas de rede seja Inverno ou seja V´rão
Um grande lenço para o lume à volta do pescoço
E seguem aos baldões segurando-se pela mão
 
Entram porém pelo terrível canal de Saint-George
Vão de proa direita aonde impera o nevoeiro
Onde os faróis marítimos com roncos de aterrar
Põem louco o incauto que nunca os ouviu primeiro
 
Ufanos cruzam o Atlântico das altas vagas
Adivinham onde estão os faróis pelas buzinas
E vão dançando vagarosa dança sobre as ondas
Que os homens dos cargueiros chamam ondas bailarinas
 
Os marujos flamengos riem-se deles e dizem
Que os ingleses não choram mais de um dia cada morto
E mesmo que quisessem chorar mais não tinham tempo
Pois por cada dez que partem só voltam cinco ao porto
 
Têm por costume seu comprar a comida a contado
Uma lata de aveia e um pedaço de presunto
Mas preferem beber o dinheiro até vir o mestre
Arrastá-los para bordo no último minuto
 
Mas melhor malta que eles nunca em minha vida vi
Vão para bordo tropeçando aos pares de mãos dadas
E sem seque darem bem conta muitas vezes
Vão ao fundo co´os barcos em sonoras gargalhadas.
 
 
 
níkos kavvadías
inimigo rumor, nº 14
tradução de manuel resende
livros cotovia
2003
 



27 março 2022

natércia freire / guerra

 
 
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
Nupciais e trementes,
Do enlace da Vida com os sentidos.
 
Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.
 
Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
Desejavam a luta, o caos a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
De gritar contra os muros que há na Terra.
 
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.
 
Grandes barcos os levam, lentamente…
 
 
 
natércia freire
liberta em pedra
1964