30 março 2022

ruy belo / nada consta

 
 
Falta-me a folha cinco
E entretanto a barba foi crescendo
a minha barba veio crescendo ferozmente
indiferente à morte de um ou outro amigo
às letras protestadas aos desgostos domésticos
às viagens lunares às convenções às lutas
Quando as coisas se erguem contra o homem
se eriçam agressivas contra ele
nem ao poeta basta o parapeito das palavras
Eu por exemplo homem de pouco tempo
trazido pelos dias aqui estou
Continuo a dizer: se alguma coisa há
que podias perder e ainda não perdeste
de que já a perdeste podes estar certo
Falta-me a folha cinco
Estou com a barba feita
Ainda este ano talvez em marienbad
eu vi mulheres curtidas pelos lutos
Mal de morte é o meu
em plena posição de pé às três da tarde
em meio do movimento do rossio
sentado à tarde no cinema em dias de semana
Já caem carnes já se perdem pêlos
já quase só me resta a devoção
lisboa certos dias um amigo às vezes
Poucas coisas importantes pensei durante a vida
uma mesa de sol em pleno inverno
um mar incontroverso alguns papéis
– continua a faltar-me a folha cinco –
pois apesar de tudo nada consta
 
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




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