12 março 2022

josé mário silva / isto de cantar

 
 
1.
pergunto
mais uma vez:
o que é isso
de cantar?
 
2.
e talvez tudo
se resuma
a gestos
simples
 
abrir muito os pulmões
ao ar frio da madrugada,
 
fazer da voz uma corda
a que outros se agarrem,
 
desencostar o corpo afeito
às superfícies habituais
 
3.
ou então
encontrar o ímpeto,
o momentum,
o momento,
o mau vento,
o isqueiro,
o dialecto,
o rastilho,
o esqueleto,
o vago lume
do intelecto,
o desejo que desejas,
de flores em coroa
e cerejas, espuma
branca das cervejas,
ganas esganadas,
vendaval aberto,
visceral acerto,
um módico
de ironia ácida
na óbvia motivação
tácita, mais
as feridas
abertas há
séculos entre nós
e a Taprobana,
uma mesma, comum,
taquicardia, a tornar dura
a mole humana
 
4.
Tudo à primeira, sem esforço
 
(querias, não querias?)
 
pois nada disso
 
é sempre à enésima,
e só escorço
 
5.
por cima do verso o risco
que o rasga como aos vermes
da terra a lâmina da enxada
 
eis o vinco de tinta sobre tinta,
a incisão oblíqua, o reverso, golpe
mortal no que ficou aquém de terso
 
6.
Sempre
tudo por dizer?
E então?
Passemos
a palavra
como quem
trafica, sim,
como quem trafica
ouro roubado
(ouro marado)
 
 
 
josé mário silva
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015




 
 

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