Mostrar mensagens com a etiqueta josé mário silva. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta josé mário silva. Mostrar todas as mensagens

10 janeiro 2024

josé mário silva / a minha janela, aos 19 anos

 
 
 
Eu espreitava o limoeiro, a sua copa
larga ocupando o quintal que a minha
avó fechava à chave quando saía (por
causa das galinhas). Para trás do muro,
só havia telhados de zinco, portões com
ferrugem, traseiras de prédios com roupa
estendida, armazéns, carros ao abandono
e gritos no crepúsculo, das mães aflitas
chamando os filhos para jantar. Eu via
tudo aquilo, sentado à mesa com uma
folha de papel em branco, esperando
o que chega quando não se espera.
Às vezes apareciam versos sem norte,
palavras vagabundas, para murcharem
logo ali – ecos de ecos. E eu olhava o
céu, as nuvens perfeitas, o vento em
turbilhão através do quintal, aquele
limoeiro com melros nos ramos e
frutos acesos na tarde como sóis.
 
É tão difícil de esquecer, a melancolia.
 
 
 
josé mário silva
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




12 março 2022

josé mário silva / isto de cantar

 
 
1.
pergunto
mais uma vez:
o que é isso
de cantar?
 
2.
e talvez tudo
se resuma
a gestos
simples
 
abrir muito os pulmões
ao ar frio da madrugada,
 
fazer da voz uma corda
a que outros se agarrem,
 
desencostar o corpo afeito
às superfícies habituais
 
3.
ou então
encontrar o ímpeto,
o momentum,
o momento,
o mau vento,
o isqueiro,
o dialecto,
o rastilho,
o esqueleto,
o vago lume
do intelecto,
o desejo que desejas,
de flores em coroa
e cerejas, espuma
branca das cervejas,
ganas esganadas,
vendaval aberto,
visceral acerto,
um módico
de ironia ácida
na óbvia motivação
tácita, mais
as feridas
abertas há
séculos entre nós
e a Taprobana,
uma mesma, comum,
taquicardia, a tornar dura
a mole humana
 
4.
Tudo à primeira, sem esforço
 
(querias, não querias?)
 
pois nada disso
 
é sempre à enésima,
e só escorço
 
5.
por cima do verso o risco
que o rasga como aos vermes
da terra a lâmina da enxada
 
eis o vinco de tinta sobre tinta,
a incisão oblíqua, o reverso, golpe
mortal no que ficou aquém de terso
 
6.
Sempre
tudo por dizer?
E então?
Passemos
a palavra
como quem
trafica, sim,
como quem trafica
ouro roubado
(ouro marado)
 
 
 
josé mário silva
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015