09 abril 2021

luís filipe parrado / orquídeas

 
Foi um erro substituir
por orquídeas
as flores artificiais
no centro da mesa.
Exigem luz, cuidados,
uma humidade temperada.
Bem as conheço:
flores venenosas
donas de uma beleza gratuita.
Às outras bastava passar
o pano do pó às vezes,
nem olhava para elas,
para as suas folhas baças,
para os seus ramos secos de arame;
estas ensinam-me, com esplendor, a tua morte,
a ferida com que o mundo vai acabar.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





 

08 abril 2021

inês lourenço / sessão literária

 
 
Falam de perfeição. De perseguir
ao menos em verso, esse vórtice de luzes
e excelsa beleza ou
beatitude que logrará
 
a canónica obra. Velho
enredo já sem graça divina
nem humana.
 
Melhor falassem
das batatas novas, que
costumam aparecer
antes da Páscoa.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015






 

07 abril 2021

josé gomes ferreira / cabaré

  
III
 
Perto das árvores
sob as estrelas
olho com orgulho para o céu
e sinto que pertenço ao universo.
 
A minha carne é de terra,
os olhos são de terra
e a minh’ alma, um pássaro sem corpo…
 
mas junto de ti,
no meio destas flores de papel
perfumadas de música,
sinto-me tímido e infeliz,
a tropeçar no corpo inútil.
 
E apetece-me não viver,
mas apenas existir.
Ser uma coisa qualquer
esquecida de criar.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
cabaré 1932
poesia I
portugália
1972





06 abril 2021

rené char / artine

 
 
Na cama que me tinham preparado havia: um animal ferido e sanguinolento, do tamanho de um brioche, um cano de chumbo, uma rajada de vento, uma concha gelada, um cartucho de bala disparada, dois dedos de uma luva, uma mancha de óleo; não havia porta de prisão, havia o sabor da amargura, um diamante de vidraceiro, um cabelo, um dia, uma cadeira partida, um bicho da seda, o objecto roubado, uma corrente de gabardine, uma mosca verde domesticada, um ramo de coral, um prego de sapateiro, uma roda de autocarro.
(…)
 
 
rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
martelo sem dono (1930)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



05 abril 2021

juan luis panero / um velho em veneza

 
 
Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Levi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver –,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003

 




04 abril 2021

vitorino nemésio / versos a uma cabrinha que eu tive

 
 
Com seu focinho húmido
Esta cabrinha colhe
Qualquer sinal de noite
De que a erva se molhe.
 
Daquela flor pendente
Pra que seu passo apela
Parece que a semente
É o badalinho dela.
 
Sua pelerina escura
Vela-a da noite sentida;
Tem cada pêlo uma gota,
Com passos, poeira, vida.
 
De silêncio, silvas, fome,
Compõe nos úberes cheios
Toda a razão do seu nome
E fruto de seus passeios.
 
Assim já marcha grave
Como os navios entrando,
Pesada dos pensamentos
Da sua vida suave.
 
E enfim, no puro penedo
De seus casquinhos tocado,
Está como o ovo e a ave:
Grande segredo
Equilibrado.
 
 
 
vitorino nemésio
eu, comovido a oeste
antologia poética
asa
2002





03 abril 2021

manuel antónio pina / as coisas

 
 
 
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.
 
Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.
 
Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.
 
 
 
manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012




02 abril 2021

dorianne laux / histórias de famílias

 
 
Tive um namorado que me contava histórias da sua família,
uma vez uma discussão acabou com o pai dele
a agarrar num bolo de aniversário todo enfeitado com as duas mãos
e a atirá-lo pela janela do segundo andar. Isso,
pensei, é o que acontece numa família normal: raiva
arremessada pelo parapeito da janela, aterrando como um presente
que vai decorar o passeio lá em baixo. Na minha,
eram punhos e golpes directos contra a boca do estômago,
e nunca ninguém perdoou a ninguém. Mas, nas histórias dele, eu
acreditava que as pessoas se amavam verdadeiramente umas às outras,
mesmo quando berravam e forçavam as portas dos armários
com os pés, ou levantavam uma cadeira como se fosse uma garrafa
de espumante barato, martirizando uma parede,
os degraus explodindo nos seus espaços vazios.
Disse-lhe que isso me parecia inofensivo, a pompa e a fúria
dos apaixonados. Ele respondeu que fôra uma maldição
ter nascido italiano e católico e quando olhou
pela janela o que viu foi esse momento
barbaramente destruído. Em contrapartida, tudo o que eu pude ver
foi um maravilhoso bolo de três andares a deslizar como um navio
maltratado até ao passeio, as velas partida, afundando-se
cada vez mais no gelo, algumas ainda a arder.
 
 
 
dorianne laux
trocando dólares por cêntimos
alguma poesia norte-americana
trad. luís filipe parrado
contracapa
2020




01 abril 2021

alejandra pizarnik / para além do esquecimento

 
 
alguma vez de um costado da lua
verás cair os beijos que brilham em mim
as sombras sorrirão altivas
luzindo o segredo que geme vagueando
virão as folhas impávidas que
algum dia foram os meus olhos
virão as murchas fragrâncias que
inatas desceram do alado som
virão as vermelhas alegrias que
borbulham intensas ao sol que
arredonda as harmonias equidistantes
no fumo dançante do cachimbo do meu amor
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
la tierra más ajena (1955)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020





 

31 março 2021

leopoldo maría panero / dedicatória

 
 
Para além de onde
ainda se esconde a vida, resta
um reino, resta cultivar
como um rei a sua agonia,
fazer florescer como um reino
a suja flor da agonia:
eu que tudo prostituí, ainda posso
prostituir a minha morte e fazer
do meu cadáver o último poema.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019





30 março 2021

manuel resende / voltar para casa

 
 
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
Cabisbaixa?
 
 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018





29 março 2021

joan margarit / passeando

 
 
Gosto de caminhar sozinho pelas ruas,
com as mãos atrás das costas, sem pressa,
entre as pessoas e os carros matinais.
Cumpridor, aquele rapaz
foi obediente toda a vida.
Hoje sai de trás daquele
que, durante tantos anos, foi o seu disfarce de homem.
Há algumas coisas que não mudaram,
coisas breves e suaves, como as ausências
que as primeiras luzes acendem no crepúsculo.
Recorda quando ao rapaz que hoje regressa
lhe explicavam que os mortos estavam no céu.
Este céu que é às vezes tão azul,
que é tão frio quando se afasta da terra,
tão negro quando se acendem as estrelas.
O rapaz regressa e agarra-o pela mão.
Os dois vão-se afastando
até serem um ponto no céu. Aves que passam.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 março 2021

bernardo soares / nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação...

 
 
Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.
 
Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude — devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.
 
Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.
 
s.d.
 


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
europa-américa
1986