Poderias mergulhar como um só bloco no nada para
onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas
mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore
que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus
actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não
seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando
a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes
como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá
ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos
abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado
cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes
que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna
de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do
teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma
criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo
que foi o meu destino.
marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995