03 agosto 2020

marguerite duras / noutro dia




     Ele não voltou a aparecer no quarto.
     Nunca.
     Era inútil aguardar o seu canto, às vezes ridente,
ás vezes triste, às vezes fúnebre.
     Tornou-se de novo muito depressa o pássaro que
eu tinha conhecido nos campos.



marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999










02 agosto 2020

saint-john perse / elogios



VII

     Um pouco de céu azulou na vertente das nossas unhas. O dia será quente onde coalha o fogo. Eis a coisa como será:
     um engelhamento nos golfos escarlates, o abismo patanhado pelos búfalos da alegria ( ó alegria só explicável pela luz! ) E o doente, no mar, dirá
     que parem o barco para que possa ser auscultado.
     E grande ócio então para todos os da popa, as arremetidas do silêncio refluindo para as nossas frontes… Um pássaro que seguia, o seu voo o arrasta por cima das cabeças, evita o mastro, passa, mostrando-nos as suas patas róseas de pombo, bravo como Cambise e doce como Assuerus… E o mais moço dos viajantes, assentando-se a três quartos na armadura: «muito vos quero falar das fontes sob o mar…» (e pedem-lhe que conte)
     – Entretanto o barco projecta uma sombra verde-azulada; plácida, clarividente, invadida por glucoses onde pastam
     em cardumes flexíveis que sinuosam
     estes peixes que deslizam como o tema ao longo do canto.

     … E eu, pleno de saúde, vejo isto, vou
     junto do doente e conto-lhe isto:
     e eis que ele me odeia.



saint-john perse
antologia poética
trad. carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961






01 agosto 2020

josé saramago / o beijo



Hoje, não sei porquê, o vento teve um grande gesto
     de renúncia, e as árvores aceitaram a imobilidade.
No entanto (e é bem que assim seja) uma viola
     organiza obstinadamente o espaço da solidão.
Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil
     humidade.
É essa a verdade da saliva.



josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987












31 julho 2020

paul auster / credo



As infinitas


pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas


pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar


ao encanto dessa escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada dizem. Dizer:
as nossas vidas mesmas


dependem disso.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







30 julho 2020

rené char / férias ao vento



Nos flancos da encosta da aldeia, bivacam campos cobertos de mimosas. Na época das colheitas pode ser que, a uma certa distância, nos suceda um encontro extremamente odorífero com uma rapariga cujos braços durante o dia se afadigaram entre os frágeis ramos. Semelhante a uma lâmpada cuja auréola de claridade fosse de perfume, desaparece, de costas voltadas para o sol poente.

Seria sacrilégio dirigir-lhe a palavra.

Calcando a erva com as alparcatas, deixai que vos passe à frente. Quem sabe se não tereis a sorte de distinguir nos seus lábios a quimera da Noite?

         

rené char
furor e mistério
sós permanecem (1938-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000









29 julho 2020

manuel de freitas / prólogo



O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs. Despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002






28 julho 2020

luís filipe parrado / teoria da narrativa familiar



Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.


luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





27 julho 2020

david lehman / passagem escura



Ele disse que sentia a falta da cidade. Queria dizer que sentia a falta dela
E o seu hábito de cravar cigarros, aparecer tarde,
Com ar de opulência. Não admirava ele não conseguir lembrar-se
Da cara dela de manhã ou do nome do país
Onde estava ou da natureza exacta da sua missão.
Receava perdê-la se a olhasse, mas
Não conseguia evitá-lo. E ela devolvia o olhar
Com os olhos maiores e mais tristes que ele já vira.
Depois ela desaparecera, engolida por uma multidão oceânica,
Uma multidão carnavalesca cheia de carteiristas e ladrões,
A distância entre os amantes continuou a estender-se
E ele continuou a chamar por ela. O oceano lançou-a
Numa costa estranha. Algumas pessoas usavam máscaras,
Tinham todos bebido vinho de mais. Estava escuro,
No bar a cassete durava sessenta minutos,
Ele já ouvira “These Foolish Things” em Francês
Sete vezes, só que desta vez outra pessoa estava com ele,
Cuja face ele nunca consegue ver. O sono para variar
Veio rapidamente. A sua ambição era grande.
Ele disse que se referia a ele. Na verdade a qualquer um.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017






26 julho 2020

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido



47
Com o dedo escreves
no vidro molhado
uma palavra indecifrável

Às oito e meia da manhã
na cidade apressada
ninguém a pode ver

Mas quem ouve o segredo
desse arabesco de árvore
já não vai ao emprego

Fica tonto a olhar
enternecidamente
tudo e nada

mesmo sem entender


mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




25 julho 2020

jorge melícias / debruçado sobre a benevolência dos séculos



Debruçado sobre a benevolência dos séculos
o cronista outorga mesuras e desdouros,
intende a blandícia da cautela,
a pua retraída do orgulho.
E a história é um animal acocorado
sob a lisonja do aparo.


jorge melícias
a oratória dos manso (2017)
a oratória dos mansos
porto editora
2020












24 julho 2020

roberto juarroz / os nomes não designam as coisas:




Os nomes não designam as coisas:
envolvem-nas, sufocam-nas.


Mas as coisas rasgam
as ligaduras das palavras
e voltam a estar aí, nuas,
à espera de algo mais que os nomes.

Só pode dizê-las
a sua própria voz de coisa,
a voz que nem ela nem nós sabemos,
nessa neutralidade que pouco fala,
esse mutismo enorme onde as ondas rebentam.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






23 julho 2020

joão almeida / sina


  
tenho poucas palavras
duas para uma caixa de fósforos
uma para lavar as mãos
nenhuma para este poema


joão almeida
canto skin
língua morta
2019













22 julho 2020

herberto helder / os ritmos


[…]

Por acidente: fui ter ao inferno.
Eu passava à hora mais movimentada, na parte baixa da
cidade.
Era a minha cidade, a cidade onde vivo, de que tão bem
conheço as ruas e as casas, os labirintos, os nomes, a secreta mate-
mática dos fluxos e refluxos, as temperaturas.
Não é preciso ser estrangeiro – tomar comboios ou aviões,
atravessar as águas.
O inferno é o último segredo do nosso conhecimento quo-
tidiano.

[…]


herberto helder
apresentação do rosto
os ritmos
porto editora
2020