01 julho 2020

till lindemann / sim



Uma rápida palavra o «sim»,
eu jurei-lhe fidelidade.
Fomos para o mar
deixando o mundo perdido na areia.



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018












30 junho 2020

alejandra pizarnik / o coração do que existe



não me entregues,
               tristíssima meia-noite,
ao impuro meio-dia branco




alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches  – 1965
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020










29 junho 2020

jack gilbert / ir lá



Claro que foi um desastre.
Esse insuportável, dilecto segredo
sempre foi um desastre.
O perigo de quando tentamos partir.
Revendo depois uma e outra vez
o que deveríamos ter feito
em vez do que fizemos.
Mas nesses breves momentos
parecíamos estar vivos. Desencaminhados,
mal-tratados, aldrabados e traídos,
certamente. Mesmo assim, nesse
entretanto, visitámos
a nossa vida possível.



jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
deStrauss
2020





28 junho 2020

a. m. pires cabral / amar




Amar foi durante muito tempo
gravar iniciais adolescentes,
no fuste das tílias.

Era então uma espécie
de idade de ouro do amor.

Mas tive de aprender à minha custa
que amar pode ser tão envolvente
como um polvo:
ama-se em muitas frentes.

Aprendi que amar, entre outras coisas,
é também navegar as águas da noite
adultamente
sem bússola e sem cautelas,
à proa fugidia dum batel.

E que, em casos mais desesperados,
é ir aos trambolhões de mar em mar.
Tumultuosamente. Sem ser correspondido.
E em chamas, se preciso for.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015





27 junho 2020

inês lourenço / satélite



Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015






26 junho 2020

manuel antónio pina / as escadas



Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direcção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.

Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras
                                                                         estrangeiras.




manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012






25 junho 2020

rui costa / ao lado




Há nomes que assustam os insectos
e nas folhas deslumbram a casa até quase
noite. As asas batem a penumbra
mas a história dos dias nunca
lhes pertence.
Em pontas de pés esfregam-se nas janelas
com os bicos postos
e só a tempestade lhes garante o sono
e a salvação.
Eu conheço homens assim quando
o tempo acalma.
Têm mil bolsos preparados para esconder
as mãos.
Praticam os espelhos
Com esforço miudinho, quotidianamente
soletrando os amigos
muitas vezes.
E quando à noite se reúnem para fabricar os sinos
ouvem palavras com o seu nome voando
eternamente
ao lado



rui costa
«à solta no ringue»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





24 junho 2020

eugénio de andrade / canção



Tinha um cravo no meu balcão:
     veio um rapaz e pediu-mo
     – mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão:
     veio um rapaz e pediu-mo
     – mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
     só não dei o coração:
     mas se o rapaz mo pedir
     – mãe, dou-lho ou não?



eugénio de andrade
primeiros poemas
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






23 junho 2020

josé miguel silva / não sei se são os trinta anos



Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.



josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





22 junho 2020

jorge luís borges / argumentum ornithologicum



     Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.




jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









21 junho 2020

herberto helder / lugar



IV
Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara, um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um des-
Espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em quem toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro da minha idade, desde
a treva, de crime em crime — espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças
ardentes: — E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.




herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996




20 junho 2020

rafael mendes / o estrangeiro



como ser gente
nesta terra gelada
que se comunica num idioma
que eu apenas gaguejo;
de uma culinária sonsa
que só conhecia de hospital

cruzar suas pontes
sob a tempestade
distribuindo folhas a4
no afã – quase infantil –
pela resposta positiva

sou eu um alien?
não condição:
 nem gente
nem alien
que somos então?

somos o adeus ao lar
o amor ao ecstasy
as moedas contadas
cigarros de cor âmbar
ah, sim, somos gente!
gente que descobre o céu azul

e coleciona fronteiras;
gente que ginga na fala
e empacota a vida em 32Kg
sim, somos gente!
(você vai ouvir falar de nós)



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019





19 junho 2020

konstantinos kaváfis / sabem os sábios o que se avizinha




                               «Pois sabem os deuses o que há-de ser; os homens,
                               o que está a ser, e os sábios, o que está para ser.»

                               Filóstrato, Vida de Apolónio de Tiana, 8.7.



Os homens sabem o que está a ser.
O que há-de ser conhecem-no os deuses,
únicos e absolutos senhores das luzes.
Mas, do que há-de ser, os sábios apercebem
o que se avizinha. O ouvido deles

em horas de grave estudo,
se sobressalta. O secreto rumor
lhes chega de feitos que se acercam.
E a ele atendem reverentes. Entanto, na rua,
lá fora, as gentes nada ouvem.

1915



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017