04 fevereiro 2020

jacques brel / o moribundo



Adeus Emile sempre te quis bem
Adeus Emile sempre te quis bem sabes
Cantámos os mesmos vinhos
Cantámos as mesmas mulheres
Cantámos os mesmos desgostos
Adeus Emile vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que és bom como o pão branco
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Cura sempre te quis bem
Adeus Cura sempre te quis bem sabes
Não líamos pela mesma cartilha
Não seguíamos as mesmas vias
Mas demandávamos o mesmo porto
Adeus Cura vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que tu eras seu confidente
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Antoine sempre te quis bem
Adeus Antoine sempre te quis bem sabes
Estou lixado por morrer hoje
Ao passo que tu estás bem vivo
E até mais rijo que o tédio
Adeus Antoine vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que eras seu amante
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus mulher sempre te quis bem
Adeus mulher sempre te quis bem sabes
Vou tomar o comboio de ver a Deus
Vou tomar o comboio que sai antes do teu
Mas cada um toma o comboio que pode
Adeus mulher vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro de olhos fechados mulher
Porque já que por ti amiúde os fechei
Sei que cuidarás da minha alma
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997






03 fevereiro 2020

adonis / seis notas do lado do vento




5

                Escrevo em árabe. Nesta língua, a presença identifica-se com o invisível. O mundo está aí ausente, embora visível. O homem, segundo esta visão, é um estado continuado de ausência. A verdade reside no seio da língua enquanto desvendar da essência do mundo através das palavras de que Deus fez uso. Neste sentido, o próprio ser é aí uma língua. Os vivos estão adormecidos, hão-de despertar depois da morte. Escrever poesia nessa língua, e segundo o seu génio, é desvelar o invisível e o abismo da ausência que nos separa dele. Escrever poesia é prender-se a dizer uma «coisa», e essa «coisa» em árabe é o próprio abismo e o invisível. Se a poesia tem algum poder de fundar, funda aqui a presença do invisível. A escrita, em árabe, ensina apenas que a pátria não é um lugar, que não se situa em parte nenhuma. Ensina que é ela própria a pátria. Ensinou-me como poderia dizer: o meu corpo é o meu país.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016






02 fevereiro 2020

álvaro de campos / ah! ser indiferente!


Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.

Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.

Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.

(Não ouvi o que dizias...
ouvi só a musica, e nem a essa ouvi...
Tocavas e falavas ao mesmo tempo?
Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...
Com quem?
Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...

12-1-1935


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






01 fevereiro 2020

agustina bessa-luís / inverno


  
     De repente, era Inverno; escurecia cedo outra vez, os vendedores de castanhas apareciam e o fumo dos pequenos assadores espalhava-se no ar húmido, ar de cidade à noite, quando toda a gente sabe que tem um lar e o procura. Os jornais eram capazes de ter razão e traziam folhetins completamente conforme os meus gostos: Sem família ou Lucrécia Bórgia. E os manequins das montras abriam a estação com os modelos que pareciam sempre algo reprováveis, mas irresistíveis – isso eram.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008










31 janeiro 2020

yorgos seferis / garrafa ao mar



XII

Três rochedos alguns pinheiros queimados e uma ermida
e mais acima
a mesma paisagem copiada recomeça;
três rochedos em forma de pórtico, enferrujados
alguns pinheiros queimados, negros e amarelos
uma pequena casa quadrada enterrada na cal;
e mais acima muitas vezes ainda
a mesma paisagem recomeça em escadaria
até ao horizonte até ao pôr do céu.

Aqui atracámos o barco para remendar os remos partidos,
beber água e dormir.
O mar que nos amargurou é fundo e inexplorado
e desdobra uma serenidade infinda.
Aqui entre os seixos encontrámos uma moeda
e jogámo-la aos dados.
Ganhou-a o mais novo e perdeu-se.

Voltámos a embarcar com os nossos remos partidos.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





30 janeiro 2020

sylvia plath / berck-plage



I

É então isto o mar, esta enorme suspensão.
Como o remendo do sol evidencia a minha queimadura.

Sorvetes de cores eléctricas, tirados da geladeira
Por raparigas pálidas, andam pelo ar em mãos queimadas.

Por que está tudo tão silencioso, que estarão a esconder?
Tenho duas pernas e movo-me sorridentemente.

As covas na areia destroem vibrações;
Estendem-se por quilómetros, vozes já quase sem som

Acenando sem suporte, metade da altura que tinham.
As linhas dos olhos, escaldadas por estas superfícies nuas.

Bumerangue preso por elásticos, ferindo o dono.
É de admitir que ele ponha óculos escuros?

É de admitir que ele exiba sotaina preta?
Aí vem ele no meio dos apanhadores de cavala

Que se põem como um muro à sua volta.
Agarram nos losangos pretos e verdes como se fossem bocados
     de um corpo.

O mar, que tudo isto cristalizou,
Afasta-se lentamente, como as serpentes, soltando um longo
     e triste silvo.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996





29 janeiro 2020

jorge figueira / era a pessoa mais fria




2  era a pessoa mais fria que se pode imaginar. às vezes
    não tinha olhos. sentava-se aqui em silêncio. o seu
    corpo estabelecia difíceis relações com a mesa,
    as conversas, os cantos. todas as outras pessoas eram
    uma promessa quebrada com o balcão, a cerveja, aquele
    espaço de reunião.
    a desordem era algo exterior, portanto, por dentro,
    infantis peixes jogavam às escondidas, aos polícias
    e ladrões, assegurando paz, equilíbrio.

    sem degraus, sem palavras, sem conflitos.
    como um filme sem legendas.



jorge figueira
hífen 3 out. 88/ mar. 89
cadernos semestrais de poesia
1988





28 janeiro 2020

tomas tranströmer / madrigal




     Herdei uma floresta densa onde raramente ponho os pés. Mas lá chegará o dia em que os defuntos e os viventes troquem de lugares. É então que a floresta se põe em movimento. Não perdemos ainda toda a esperança. Os maiores crimes continuam por desvendar, malgrado o esforço de tantos polícias. Do mesmo modo, algures nas nossas vidas, há um grande amor por revelar. Herdei uma floresta densa, mas hoje entro numa outra, plena de claridade. Tudo o que vive canta, serpenteia, abana, rasteja! É primavera, e o ar que respiramos é fortíssimo. Tenho um exame da universidade do olvido, e as mãos tão vazias como a camisa pendurada na corda de secar roupa.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012







27 janeiro 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)


4

TENS qualquer coisa a ver
Com a noção de Deus,

Água que já não és água,
Poder desprovido de mãos e de instrumentos,

Peso sem emprego
Para quem o tempo não existe.



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965






26 janeiro 2020

ricardo reis / a nada imploram tuas mãos já coisas,



A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
        No abafo subterrâneo
        Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
        Te ergue qual eras, hoje
        Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
        Não lembra. A ode grava,
        Anónimo, um sorriso.

5-1927




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946






25 janeiro 2020

tiago fabris rendelli / mensagem para além da carne


foto: wladimir vaz

sou parte da aritmética louca:
do podre surge o mofo
flor fruto vida e morte
círculo eterno
de criar restos
desintegrar
e refazer o mundo.

sou o outro a outra
aquele e aquilo
e sei que existem mortos
que esperam o verbo certo
para subir aos céus.

sou um punhado de dias de que não me lembro
as tardes que perdi no horizonte
o soldado morto de alguma guerra esquecida
a família no campo depois da seca
a terra dura
o solo pueril
a despedida
a colheita que não vingou
o tempo de promessa esquecido.

sou os barcos perdidos
o sonho de Ícaro
a alquimia de Melquíades
os espantos de Pedro
as rezas de Maria
a primeira estrela existiu
e a luz que transporta a mensagem
                             do seu próprio fim.

é a finitude que nos abre o infinito.




tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







24 janeiro 2020

fernando lemos / veneno



Veneno
ou uma viola branca
ventre ou duas luvas
brancas

vidro
ou eu abatido na cama

domingo
ou eu recebendo à bala
os vizinhos

tu
ou eu cego de te inventar

eu
ou apesar da fúria
sombra em pedaços
cintilantes


fernando lemos
poesia
porto editora
2019








23 janeiro 2020

juan luis panero / antes que chegue a noite


Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003