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17 junho 2023

jorge figueira / um a um caminhamos sem mãos

 
 
Passo pelos cafés do porto e
nossa senhora nunca vi povo tão
violado tão entregue à mesa
aos guardanapos
aos infinitos da mesa
cruciforme.
limpam os dedos
das mãos.
cegam o pescoço como
crianças estrábicas
tocam na estridência do inferno
e no carisma do pé
levantam voo num arredondado
de estupidez e saliências.
(demasiado sobre a mesa
o vinho e a água criam
demasiada suspensão
comunal).
cada um tem as suas barbatanas
veias grossas e
infalíveis
cada um vai ao seu museu
 
as mulheres carregam a tradição
da sombra
concebem a roupa do sono
ideias tremeluzentes
e sob um tecto moribundo
e violeta
esperam pelo bailarino
pelo bailado central
do homem
hércules.
 
 
jorge figueira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



09 outubro 2021

jorge figueira / premeditação do tempo frio

 
 
o chão este tarzan
é vosso este reino
ministros
Vim com um fumo de outrora
afinal era uma páscoa de
cigarros
e eu já não era
inquilino ou
Sábio.
Vejo agora o animal cacto
a árvore verde
a fruta medieval
a chuva sincopada
de culpa
que dilui
 
As envolventes
são a sinistra assinatura
da vossa permanência
o pequeno silêncio
os braços pesados
as incumbências do destino
central.
Eu por aqui usarei sempre
a túnica mais suave
letras mortas e
garrafais.
Sempre que eu estiver a bordo
de uma despedida
lembrar-me-ei desta retícula
de azar-chão-cimento
intranquilo
 
E pasmarei sempre com a
desenvoltura em
espiral fechada
do animal-cacto
(carnaval inútil
olhos mortos
de riso).
 
 


jorge figueira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 




29 janeiro 2020

jorge figueira / era a pessoa mais fria




2  era a pessoa mais fria que se pode imaginar. às vezes
    não tinha olhos. sentava-se aqui em silêncio. o seu
    corpo estabelecia difíceis relações com a mesa,
    as conversas, os cantos. todas as outras pessoas eram
    uma promessa quebrada com o balcão, a cerveja, aquele
    espaço de reunião.
    a desordem era algo exterior, portanto, por dentro,
    infantis peixes jogavam às escondidas, aos polícias
    e ladrões, assegurando paz, equilíbrio.

    sem degraus, sem palavras, sem conflitos.
    como um filme sem legendas.



jorge figueira
hífen 3 out. 88/ mar. 89
cadernos semestrais de poesia
1988