02 novembro 2019

josé pascoal / espera por mim



Espera por mim.

Estou a chegar
À tua janela
De vidro translúcido.

Serei esse pássaro
Que volta sem medo
À casa perdida
No céu da lonjura



josé pascoal
branza
editorial minerva
2019









01 novembro 2019

yorgos seferis / o velho



Passaram tantos rebanhos tantos pobres
e ricos cavaleiros, outros
das aldeias distantes passaram
a noite nas valetas da estrada
acenderam fogueiras contra os lobos, vês
a cinza? Negrejantes círculos cicatrizados.
Está cheio de marcas como a estrada.
Ao poço seco mais acima atiravam os cães
com raiva, não tem olhos está cheio
de marcas e é leve; o vento sopra;
não distingue nada conhece tudo,
bainha vazia de cigarra em árvore oca
não tem olhos nem nas mãos, conhece
a alba e o oceano conhece as estrelas
o sangue delas não o alimenta, nem sequer
está morto, não tem tribo não morrerá
esquecê-lo-ão simplesmente, nem sequer antepassado.
As unhas cansadas nos seus dedos
escrevem cruzes sobre lembranças podres
enquanto o turvo vento sopra. Está a nevar.

Vi a geada em redor dos rostos
vi os lábios húmidos as lágrimas geladas
no canto dos olhos, vi a linha
de dor junto das narinas e o esforço
nas raízes da mão, vi o corpo a acabar.
Nem solidão tem esta sombra amarrada
a um pau que secou que não verga
não se baixa para se deitar, não pode;
o sono espalharia as suas articulações
pelas mãos das crianças para brincarem.
Ordena como os ramos mortos
que se partem quando anoitece e o vento
acorda dentre os barrancos
ordena às sombras dos homens
não ao homem dentro da sombra
que não ouve excepto a voz baixa
da terra e do mar aí onde se juntam
à voz do destino. Está completamente de pé
na margem, entre novelos de ossos
entre pilhas de folhas amarelas:
gaiola vazia esperando
pela hora do fogo.


Drénòvô, fevereiro 1937



yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








31 outubro 2019

charles simic / janeiro



Dedadas de criança
Numa janela gelada
De uma pequena escola.

Um império, li algures,
Mantém-se a si próprio graças
À crueldade nas suas prisões.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










30 outubro 2019

octavio paz / vida pressentida



Relâmpagos ou peixes
na noite do mar
e pássaros, relâmpagos
na noite do bosque.

Os ossos são relâmpagos
na noite do corpo.
Oh mundo, tudo é noite
e a vida é relâmpago.



octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


29 outubro 2019

carlos de oliveira / infância




I

Terra
sem uma gota
de céu.




carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998










28 outubro 2019

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos



começo a fala:
o som dos meus lábios
nesta boca de silêncio:
lá fora, o oriente
nas fronteiras do meu poder.
que arbitrária beleza
me fez conceder
a esse estranho corpo da Grécia
a possível eternidade do meu?
que outro nome
– menos fugaz que o das guerras –
poderia eu ter desejado
para o sentido das memórias?
por um breve lapso de tempo
teço de paisagens o seu perfil
como se
para lá da vida
ainda houvesse a morte.



r. lino
palavras do imperador hadriano
segunda série
políptico
companhia das ilhas
2016





27 outubro 2019

eugénio de andrade / outras tardes



     Debruço-me para escutar o canto. De onde viria, se a luz sabia a sal? Dele falava quando disse que o outono já se estendera sobre a palha. A terra cheia bem: no silêncio crispado as maçãs ardiam de doçura.
     Era no tempo em que as cabras subiam às falésias. Talvez algum pastor lhes seguisse o rasto. E cantasse então.


eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












26 outubro 2019

judite canha fernandes / podemos amar ou podemos



se eu partir
permanecerás
incólume
levando-me dentro

se eu ficar
seremos o líquido em movimento que alimenta o perene jardim

aceitemos a morte e a vida num grão de areia




judite canha fernandes
podemos amar ou podemos
editora urutau
2019



25 outubro 2019

marta navarro; paola d´agostino / minha melhor amiga era louca



Minha melhor amiga era louca
desequilibrada
de ter um pé excêntrico e outro clínico
largava brincos pela cidade como quem tem calor tira o lenço
do pescoço pendura-o nas costas da cadeira pede a conta
levanta-se
e vai-se embora
Escrevi muitas histórias à volta dos seus brincos
                                    à volta da sua cabeça meia perdida
como quem colhe o acaso
                           o selvagem
e o toma nas mãos como seu

Precisava dela
como uma palavra que brilha no escuro
à procura do impulso do dia
querendo que me ensinasse a arte
de bem se perder




marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014





24 outubro 2019

alberto lins caldas / tântalo




I

 aqui é o caos  
● o redemoinho do caos 
● no centro indistinto do caos ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● todos devorando pombos e pardais ●
● nada menos caos no turbilhão de neve ●
● passos deslizando na lama de neve ●

● vento folhas sementes mortas ●
● arvores se curvando como servos ●
● muros se movem indo pra calçada ●
● muros desejando cair rolar e voar ●
● planando no turbilhão de neve ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● todos devorando pombos e pardais ●

● neve q bate nas portas sem entrar ●
● todos escondidos sobre as camas ●
● no centro indistinto do caos a nuvem ●
● essa q cada vez devora mais e cresce ●
● os velhos ossos dos muros o marmore ●
● todas essas arvores mortas pelo frio ●
● se partindo curvadas como servos ●

● ruas se contorcendo ●
● ao redor do centro indistinto do caos ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● nada menos caos no turbilhão de neve ●
● devorando os q caem na lama de neve ●
● vendo quase na treva do dia o caminho ●
● todos devorando pombos e pardais ●




alberto lins caldas
tântalo
flan de tal
2019





23 outubro 2019

joão habitualmente / santa catarina




então os americanos
fizeram mais uma experiência
nuclear
a paisagem afundou-se em volta num segundo?

e o risco em fogo do sol agora é o
risco em fogo do próprio fogo?

tudo enquanto
nós passeávamos em santa catarina
depois dum filme do marco ferreri
vê lá




joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019






22 outubro 2019

konstantinos kaváfis / compreensão




Os anos da minha juventude, a minha vida de prazer –
que claramente vejo agora o seu sentido.

Que inúteis remorsos, que estéreis…

Mas não via o sentido nessa altura.

Em meio à minha dissoluta vida jovem
ia tomando forma a minha poesia,
ia-se desenhando o contorno da minha arte.

Por isso nunca houve firmes arrependimentos.
E as decisões de me dominar, de mudar
duravam duas semanas se tanto.


1918



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





21 outubro 2019

manuel antónio pina / ruínas



Por onde quer que tenha começado
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.



manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012