17 agosto 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão



.6.

É apenas um sino frio como um cristal
Um rastro ungido pela neblina.
Quase poderia tocar-lhe como o vinho toca as ânforas.
Ou a piedade toca o pranto.
Ou extermina a inocência.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018












16 agosto 2019

sophia de mello breyner andresen / serenamente…




Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Dos tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.



sophia de mello breyner andresen
no tempo dividido
obra poética
assírio & alvim
2015








15 agosto 2019

fernando lemos / quando um dia estiver morto



Quando um dia estiver morto
não me chamem assim de morto
mas digam que fui um fraco
que lutei
Não digam que acabei
mas que estou iludido
Que fiz desertos com túmulos
praias geladas ao passear doentes

Digam que está ali comigo a cor
o ar e a posse
Que fui igual e traído
Que acordei dentro do vulcão
rompi manhãs de veludo
feito um rato
Que confundi papel com outro papel
Que troquei a mão de alguém
por outra mão
o sorriso por um desejo
a cerimónia por acto amoroso
Que troquei as horas por frases inocentes
e as rosas por actos gratuitos

Digam que cruzei mal as linhas
que rasguei papéis de valo
e soquei mulheres
Que amei os velhacos
fui traído com amor
raiva e convicção
Que perdi oportunidades
e das melhores
Que não conheci nem a lei
nem o cheiro do crime
Que abusei da minha força
na fraqueza dos outros
e da fraqueza também

Digam que fui ridículo
e até brilhante
Podem dizer que não roubei
nem fui culpado nas guerras

Quando morrer não digam

Não me chamem assim de morto




fernando lemos
poesia
porto editora
2019








14 agosto 2019

gil t. sousa / aguarela




a beleza da árvore
que finge seguir o vento
quando ele passa

e os muros caiados
que guardam o sol
para quando nos falta

a água fresca
a respiração da janela larga
sobre o campo

e este caminho
que cresce tanto
até ser estrada

as mãos ainda abertas
para os frutos
e para as flores

os pássaros e o mundo
o tempo a rasgar-se
no corpo

no meu, no teu corpo




gil t. sousa
desertos






13 agosto 2019

carlos de oliveira / tarde



A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998








12 agosto 2019

paul éluard / o último suspiro



Com uma flecha morre um pássaro
Em teus ombros escombros
Pende uma réstia de luz
Valem menos os anos que os dias
E a vida é menos que o amor.

Tua vales ainda um beijo
Só o tempo de sentir
O quanto desperto estou
Tudo é claro sob este lençol branco
Que te liberta e me espera



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






11 agosto 2019

eugénio de andrade / matéria solar



13

Aqui me tens, conivente com o sol
neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.



eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000








10 agosto 2019

joão almeida / e o verão passou




não me afasto para dentro de nenhum abrigo
as palavras são estas no nevoeiro

pela estrada plana

paro à porta de alguém provável
e avanço de novo
sem mais ninguém



joão almeida
canto skin
língua morta
2019







09 agosto 2019

agustina bessa-luís / verão



Havia diante de nós três meses compridos, sem praia e sem mudanças. O calor varava a ramada sobre o pátio, e o banco de jardim que lá estava só lhe faltava crepitar e arder. Acho que era por se dar ao respeito, como banco e não madeiro velho, que ele não se punha a fumegar. Vinha da mina uma água fria e saborosa, e ela só alegrava a mesa de Verão; o seu gorgolejar na treva de xisto da mina dava uma impressão de calma e abundância.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008








08 agosto 2019

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis





XVIII

porque
todo o lugar é o limiar do mundo, janela de sacada que dá para a obra da paisagem; entre mim e ela há ainda uma mesa redonda – vermelha – , e duas cadeiras de jardim;          o meu universo preferido, Aramis, é a certeza da paisagem para além do limiar, e o mergulho ocular em certas cores trazidas da matéria: o castanho – da madeira; o vermelho – do ferro; o verde – das plantas;
o rosa – de uma emoção forte de suavidade.
São as cores em que a composição me é quase espontânea, juntas à sombra, constituem a                            visão.


       O azul excluído, é a cor única da nossa Comunicação final______________________ já sem caminho.



maria gabriela llansol
julião sarmento
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991







07 agosto 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



X

qualquer outra vida
não esta
qualquer outra existência
não a que nos querem dar
que pela força de sermos nela
sabemos errada
o voo das aves
é em si muito mais
do que o que parece
nós próprios estamos aqui
não para o que nos dizem
mas sim     sim
para seguirmos o nosso caminho
caminho que nos foi dado
oferecido
há muitos séculos já
quando ainda sabíamos da vida
quando ainda o nosso corpo
era o nosso corpo
arco vibrante a ligar-nos com
o desconhecido
nós somos da montanha gelada
do lugar esquecido
raiva e maldição
e também amor exaustivo
agora     logo     sempre
a recusa é nossa     só nossa
mas também nosso
é     será sempre
o encontro dos corpos que temos
já antigos     muito belos
um dia

          julho – 1950




mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018






06 agosto 2019

rui diniz / os anos de transição – uma canção de exílio



Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café Versailles,
tomei um whiskey com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977







05 agosto 2019

josé gomes ferreira / enterrava-se a noite



                (Skerzo)


VIII

Enterrava-se a noite
e às vezes também os astros
na alegria das férias
– para dar destinos azuis
às raízes dos cardos
cheias de estrelas
estéreis.


josé gomes ferreira
poesia V
memória – II 1959
portugália
1973