06 junho 2019

francisco brines / por um incumprimento do presságio



     Não me envies dor. Já, minha vida,
me despedi há tempo do transtorno
que nos infundes cega. Muitos anos
o desejei supondo que ainda vinha.
Continuo a merecê-lo, mas agora
gostaria de desistir de sua vinda.
Despedir-me do mundo, com a ventura
que suspende os olhos do amante
seria graça maior que ter nascido.
Mas débil ante a dor e conhecendo
a matéria desprezível de que és feita,
não pares ante meus anos os teus passos,
não me ofereças aquilo que arrebatam
de tuas mãos os jovens. Dá-lhes,
a eles, com seu sabor, conhecimento;
se são agradecidos, vão amar-te
para sempre. Eu quero que os corpos
deixem seu belo fogo entre meus braços,
em troca de moedas ou palavras.
Mas o que já vivi, fique vivido;
Estou desabitado; não me tentes
Para ser infeliz tão fora de horas.


francisco brines
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001






05 junho 2019

armando silva carvalho / a cabeça escuta



Que mais pode este dia?
Em cada ligação a morte fala baixo
e arrefece as pernas das telefonias.
Em cada pulsação
escondemos o rosto embriagado
pelo tédio ou pelo terror
de mãos desfeitas.
Por vezes o silêncio ainda nos salva
e com que gratidão
banhamos a pele clara dos sentidos
na luz dos seus relâmpagos
mortais.

Porque a cabeça escuta,
escuta e nunca mais.



armando silva carvalho
sentimento de um ocidental 1981
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007







04 junho 2019

joaquim manuel magalhães / aluviões


31

Findou o poente nas paredes.
Breves e desconhecidos
os pássaros
assomam ao repouso dos telhados.
As últimas enxadas levantam
pela penumbra dos aroeiros
a maresia musgosa dos terrenos.
Nos quelhos com rebanhos
voltam os tractores.
Arvoredo rasteiro, cila marítima,
marcos geodésicos, a despedida,
a devastação.


joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985






03 junho 2019

luís miguel nava / basalto




Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.


luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







02 junho 2019

reinaldo ferreira / um sossego mais largo



Um sossego mais largo
Que o esquecimento dos homens
Me seja a morte…
Como um veleiro abandonado
No silêncio do mar;
Como, antes do Tempo,
Como, depois do Tempo,
O não haver ninguém para o contar…

Como não ter existido
Me seja a morte!
Mas não já…



reinaldo ferreira
poemas
vega
1998





01 junho 2019

antonin artaud / entre o corpo e o corpo não há nada



Entre o corpo e o corpo não há nada,
a não ser eu.
Não é um estado,
nem um objecto,
nem um espírito,
nem um facto,
e ainda menos o vazio de um ser,
absolutamente nada de um espírito, nem do espírito,
nem um corpo,
é o eu intransponível.
Mas não um eu,
pois não tenho tal.
Eu não tenho um eu, mas não há senão eu e ninguém,
nenhum encontro possível com o outro,
o que eu sou não tem diferenciação nem oposição possível,
é a intrusão absoluta do meu corpo, por todo o lado.



antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






31 maio 2019

konstandinos kavafis / lembra-te, corpo…



Corpo, lembra-te não só do quanto foste amado,
não só das camas onde te deitaste,
mas também daqueles desejos que para ti
brilhavam nos olhos abertamente,
e tremiam na voz – e algum
obstáculo casual os frustrou.
Agora que tudo está no passado,
quase parece como também àqueles
desejos tivesses sido dado – como brilhavam,
lembra-te, nos olhos que para ti olhavam;
como tremiam na voz, para ti, lembra-te, corpo.


konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005






30 maio 2019

wislawa szymborska / roupa



Tiras, tiramos, tiram,
gabardinas, jaquetas, casacos, blusas,
de lã, algodão, de algodão e lã,
saias, calças, meias, roupa branca,
vestindo, pendurando, atirando para
costas de cadeiras, asas de biombos,
por agora, diz o médico, não é nada de sério,
vista-se, por favor, descanse, viaje,
tomar em caso de, antes de dormir, depois de comer,
voltar daqui a três meses, um ano, ano e meio;
vês, e tu que pensavas, e tínhamos medo,
e vocês supuseram, e ele que suspeitava;
é altura de atar, apertar, de mãos ainda trémulas,
atilhos, éclairs, fivelas, colchetes,
cintos, botões, gravatas, colares,
e retirar das mangas, da mala, da algibeira,
enrugado, às bolas, às riscas, às flores, aos quadrados, o lenço
que de repente continua a revelar-se útil.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




29 maio 2019

vladimir maiakóvski / eu



1.
Pela calçada
da minha alma percorrida até à usura
os passos dos loucos
batem com os tacões de frases duras.
Aí onde as cidades
estão suspensas
e numa rede de nuvens
os pescoços torcidos
das torres
endureceram –
eu sigo
sozinho a soluçar,
porque há polícias
crucificados
nos cruzamentos.


vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019





28 maio 2019

manuel antónio pina / o regresso




Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.



manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012






27 maio 2019

joão miguel fernandes jorge / o rosto a linha o risco



O rosto a linha o risco
do teu lado intenso à
tua mão?

O rumor
o excessivo inverno
e

E os olhos para não dizer.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






26 maio 2019

antónio ramos rosa / nesse momento a sombra foi uma ferida



Nesse momento a sombra foi uma ferida
e o silêncio foi na sombra o esplendor
porque o nome que disseste era o domínio
que só no silêncio encontraria a face

Nada se abria rasgou-se lentamente
e alguém foi em mim não sei quem fui eu
e uma palavra a mais no intervalo surgiu

Não sei se se perdeu se vai perder-se
ou se para sempre o nome em nós sofria
se fomos pelo nome o lábio do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





25 maio 2019

daniel filipe / aqui nesta tarde de maio



Aqui nesta tarde de Maio
canto obcessivamente a minha pátria
Canto-a como quem ama ou sonha com o lar e refúgio
calmo braseiro fértil jardim litoral merecido
Canto-a de dentro para fora ignoto
descobri da ilha antes do mar viciosa
esperança lúbrico entardecer
Canto dizendo pátria olhos despertos
fecundado de amor
ó pátria local do único abandono
possível antes da hora
liberdade serena consentida

Canto e à minha volta o rio humano flui
adolescentes entram nos cafés
discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano
ama-se
telefona-se
murmuram-se boatos e promessas de emprego



daniel filipe
pátria lugar de exílio
editorial presença
1974