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25 maio 2019

daniel filipe / aqui nesta tarde de maio



Aqui nesta tarde de Maio
canto obcessivamente a minha pátria
Canto-a como quem ama ou sonha com o lar e refúgio
calmo braseiro fértil jardim litoral merecido
Canto-a de dentro para fora ignoto
descobri da ilha antes do mar viciosa
esperança lúbrico entardecer
Canto dizendo pátria olhos despertos
fecundado de amor
ó pátria local do único abandono
possível antes da hora
liberdade serena consentida

Canto e à minha volta o rio humano flui
adolescentes entram nos cafés
discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano
ama-se
telefona-se
murmuram-se boatos e promessas de emprego



daniel filipe
pátria lugar de exílio
editorial presença
1974






01 outubro 2014

daniel filipe / 1.ª canção



De ti sabes o nome
a hora exacta o martelo no relógio
a escassa visão do tempo  novo a vida
sempre imatura e entanto desejada

De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atracção
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
 gagarine vostok estação espacial

De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade

Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos do povo
só não sabes do medo do ódio da terrível impotência

Só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio



daniel filipe
pátria lugar de exílio




02 agosto 2014

daniel filipe / desnecessária explicação



Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?


daniel filipe
marinheiro em terra
1949




25 fevereiro 2014

daniel filipe /a invenção do amor



Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
     janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
      relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
     nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
     quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome
     de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio  A descoberta  A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou  A TV anuncia
iminente a captura  A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
     fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique  Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da
     defesa passiva
Todos  Decrete-se a lei marcial com todas as suas conse-
     quências
O perigo justifica-o  Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas  Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inex-
     plicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem
     razão
Aplicado no entanto  Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psi-
     cólogos
Ainda bem que se revelou a tempo  Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros  É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das nor-
     mas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao
     temor do castigo
Que todos estejam a postos  Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais Iigeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa
Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância  Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
Esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais
     drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades
     individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da
     correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher
     amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los  É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater

É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz  Alguém que os
     escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado
     de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância  Campos verdes floridos
Água simples correndo  A brisa nas montanhas
Foi condenado à morte é evidente  É preciso evitar um mal
     maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas  Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boites com
     orquestra privativa
Não estarão nunca aí  Procurem-nos nas ruas suburbanas onde
     nada acontece
A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado
sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí  Engatilhem as armas invadam a casa disparem
     à queima roupa
Um tiro no coração de cada um  Vê-los-ão possivelmente
dissolver-se no ar  Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos e da mulher

Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr
     o pranto
Quer dizer que fostes contagiados  Que estais também perdidos
     para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o
     tiro indispensável
Não há outra saída  A cidade o exige

Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer  Matai-o  Amigo irmão que seja
matai-o  Mesmo que tenha comido à vossa mesa crescido a
vosso lado
matai-o  Talvez que ao enquadrá-los na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até o fim da noite  Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontrarem numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios  Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchettes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o modo inexplicado
 a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de auto-
     móveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência o universo do amor
E é preciso encontrá-los  E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertaram as suas
no silêncio presago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite

E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERAMENTAL À IMPRENSA.

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as
     saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de
     ferro

É na cidade que é preciso procura-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não se preocupem com os gastos a Assembleia votou um cré-
     dito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação
     Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora  Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do
     Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as
     desculpas do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto
     diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÜSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a
     mulher
escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante
     recompensa
destinada a quem prestar informações que Ievem à captura
     do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta   É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual

Investigamos nos arquivos  Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção científica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço
Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva

O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem  Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da
     gerência
era bem paga tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa  Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu
Esperam por ela em casa duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos

Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde
     de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas
Já não podem escapar  Foi tudo calculado
com rigores matemáticos  Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos  Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
 une fenêtre eclairée)



daniel filipe
a invenção do amor e outros poemas
1961




16 novembro 2013

daniel filipe / pátria lugar de exílio



Neste ano de 1962
não como Nazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamerite
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a urna esquina da estação do Rossio
 esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto do aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
apesar de tudo farto
eu
neste ano de 1 962
exactamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria



daniel filipe
pátria lugar de exílio