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21 agosto 2024

antonin artaud / eu, artaud

 
 
Eu, Artaud,
esforçado,
a livrar-me do mal,
 
mas por não saber quando isto terminará.
 
Não posso saber o farei amanhã,
não o quero saber,
mas quero saber que o mal terminará de imediato.
Não, também nunca terminará.
Então.
Sou o senhor dos elementos
e dos acontecimentos.
Já não quero ser tocado,
                   invadido
como sou invadido pelos outros,
já não quero ser adormecido por outros,
o sono é uma ilusão em que se continua a viver.
 
Não quero mais estas angústias mortais.
 
Não quero mais dormir.
 
Não quero morrer.
 
Não quero mais sonhar.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019



 

19 setembro 2023

antonin artaud / pois o fim é que é o início

 

 


 
Pois o fim é que é o início.
                    E esse fim
                    é aquele mesmo
                    que elimina
                    todos os meios.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






03 outubro 2020

antonin artaud / renego o coração

 
 
Renego o coração
e também a morte.
 
É sempre por piedade
pelos outros
que nos deixamos meter num esquife,
que nos deixamos enfiar
 
no buraco cavo,
oco de cânfora
e de sangue avermelhado.
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019




 

29 fevereiro 2020

antonin artaud / e que o plano se inflame em volume,



E que o plano se inflame em volume,

pois o plano não tem volume,
é o volume que faz o plano;

o volume come o plano
a girar por todos os lados.


antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






01 junho 2019

antonin artaud / entre o corpo e o corpo não há nada



Entre o corpo e o corpo não há nada,
a não ser eu.
Não é um estado,
nem um objecto,
nem um espírito,
nem um facto,
e ainda menos o vazio de um ser,
absolutamente nada de um espírito, nem do espírito,
nem um corpo,
é o eu intransponível.
Mas não um eu,
pois não tenho tal.
Eu não tenho um eu, mas não há senão eu e ninguém,
nenhum encontro possível com o outro,
o que eu sou não tem diferenciação nem oposição possível,
é a intrusão absoluta do meu corpo, por todo o lado.



antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






03 abril 2019

antonin artaud / os seres




Os seres
não saem
para o dia exterior

Não têm outro poder
senão jorrar
na noite subterrânea
onde se formam.

Mas já há eternidades
que passam o tempo deles
que passam o tempo
a fazer-se
assim
nem um só
alguma vez se produziu.

É preciso esperar
que a mão do Homem
os tome e os faça
pois só
o Homem
não nascido e predestinado
                       tem
essa terrível
                       e
inefável
capacidade


tirar o corpo do humano
à luz da natureza
mergulhá-lo vivo
no luar da natureza
onde o sol o desposará
                        por fim.



antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






23 fevereiro 2016

antonin artaud / a rua



A rua sexual anima-se
ao longo das caras mal-avindas,
os cafés pipilando de crimes
desenraízam as avenidas.

As mãos de sexo queimam os bolsos
e os ventres fervem por baixo;
 entrechocam-se os pensamentos,
e as cabeças menos que os buracos.


antonin artaud
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



29 dezembro 2013

antonin artaud / post scriptum



Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta eu dizê-lo
como só eu o sei dizer
e imediatamente
verão meu corpo actual
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
notórios
um novo corpo
no qual nunca mais
me poderão
esquecer.



antonin artaud
frança, 1896-1948




24 outubro 2007

põe-se a questão de...


















O que é grave
é nós sabermos
que depois da ordem
deste mundo
uma outra existe.

Que outra?

Não o sabemos.

O número e a ordem das suposições possíveis
é neste campo
justamente
o infinito!

E o infinito o que é?

Não sabemos exactamente o que seja.

É uma palavra
que nós usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
perante a desmedida
possibilidade,
infatigável e desmedida.

E o que vem a ser exactamente a consciência?

Não sabemos exactamente o que seja.

É o nada.

Um nada
de que nos servimos
quando não sabemos qualquer coisa
para designar
qual a faceta que desconhecemos
e então
falamos em
consciência,
pelo prisma da consciência,
quando há cem mil outros prismas.

E então?

Parece que a consciência
estaria em nós
ligada
ao desejo sexual
e à fome;
mas poderia
perfeitamente
não ter qualquer ligação
com isso.

Diz-se,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver;

e imediatamente
a par do apetite de viver,
é o apetite de comida
o que imediatamente nos vem ao espírito;

como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e gente que tem fome.

Pois também isso
acontece
ter fome
sem apetite;

e então?

Então

o espaço do possível
surgiu-me um dia
como um grande peido
que eu tivesse dado;
mas nem o espaço,
nem o possível
sabia eu exactamente o que fossem,
nem nisso sentia necessidade de pensar;

eram palavras
inventadas para definirem coisas
que existiam
ou não existiam
frente à
premente urgência
de uma necessidade:
a de suprimir a ideia,
a ideia e o seu mito
e em seu lugar instituir
a manifestação tonante
desta explosiva necessidade:
dilatar o corpo da minha noite interna,

no nada interno
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação
de que há
algo
a que dar lugar:

o meu corpo.

Mas então
reduzir o meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
em formação
dentro de mim?

Não sei
mas
sei que

o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro
o porvir,
o ser,
o não ser,
o eu,
o não eu,

nada são para mim;

mas há uma coisa
que é qualquer coisa,
uma só coisa
susceptível de ser qualquer coisa,
uma coisa que eu sinto
por ela querer

SAIR:

a presença
da minha dor
de corpo,
a presença
agressiva
jamais cansativa
do meu
corpo;

e por mais que me apertem com perguntas
e que eu me esquive a todas,
chego a um ponto
em que me vejo constrangido
a dizer não,

NÃO

portanto
à negação;

e esse ponto
é quando me apertam,

quando me amolgam
e me dão tratos
até de mim sair
o alimento,
o meu alimento
e o seu leite,

e então que fica?

Fico eu sufocado;
E não sei que acção será essa
Mas apertando-me assim com perguntas
até à completa ausência,
ao nada
da questão,
apertaram-me
até sufocar
em mim
a ideia de corpo
e de ser um corpo,

e foi então que eu senti o obsceno

e que me peidei
de irrisão
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.

É que me apertavam
contra o meu corpo
e contra o corpo

e foi então
que eu fiz ir tudo pelos ares
porque no meu corpo
não se toca nunca.






antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
trad. luiza neto jorge
& etc
1975