24 abril 2018

josé carlos ary dos santos / in memoriam




Requiem aeternam dona eis,
Domine, et lux perpetua
Luceat eis.



Que a terra lhe seja pesada.
Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,
Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta
E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento
E arrase com ela a memória gravada
Na lembrança demente dos que o choram.

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Cheio de ossos e uivos
E garfos aguçados
E que reparta o medo com o primeiro intruso
E o vento se insinue pelas portas fechadas
E rasteje no quarto
E suba pela cama
E lhe entre no olhar como estiletes de aço,
Lhe penetre os ouvidos como agulhas de som.
Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,
Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama!

Que o nome que era o seu o persigam os ecos,
O gritem no deserto as gargantas com sede,
O murmurem no escuro os mendigos com frio,
O clamem na cidade as crianças com fome,
O soluce o amante de súbito impotente,
O maldigam no exílio as almas sem descanso.

Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,
A pálpebra doente,
O vómito de sangue.
Que o gesto que era o seu o imitem as mães
Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,
O desenhem a lume os braços amputados,

O perpetue o esgar dos jovens mutilados,
O dance o condenado que morre na fogueira.

Que o gesto que era o seu seja o punhal do louco,
A arma do ladrão,
A marca do vencido.

Que o sangue que era o seu o farejem os cães
Nas veias de seus filhos.
Que o sangue que era o seu se lhes veja nas mãos,
E lhes aperte os pulsos como algemas de lodo,
Lhes carregue o olhar como um sopro de infâmia,
Lhes assinale a testa como um escarro de fogo,
Lhes atormente os passos como um peso de lama.

Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,
A máscara de sal,
A vingança do pobre.
E que o Exterminador, no seu trono de enxofre,
o faça tilintar os guizos da tortura
Até que o mundo o esqueça
E mais ninguém o chore.



ary dos santos
vinte anos de poesia
fotografias, 1970
círculo de leitores
1983







23 abril 2018

eva christina zeller / o mar não conhece o mar




o mar não conhece as profundidades
nenhum azul nem conhece as suas ondas
o mar não é soberbo nem
manso nem amargo
não conhece o sabor do vento nem da espuma
o mar não vê nenhum sol
nem terra nem seixos
O mar não ama o céu
nem a lua
o mar não se conhece


eva christina zeller
sigo a água
trad. maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996






22 abril 2018

luís vaz de camões / verdes são os campos




Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.



luís vaz de Camões








21 abril 2018

nydia bonetti / caminho






caminho arranhando meus pés sobre as pedras
quentes

gosto

do som das rodas que se arrastam sobre
concreto

fatídicas vias [de fato]

gosto
do som da vida em seu eterno arrastar-se
                                                                  sobre/tudo



nydia bonetti
& natália gregorini
de barro e pedra
editora urutau
2017






20 abril 2018

wislawa szymborska / crepúsculo do século




Devia ter sido melhor que os anteriores o nosso século XX.
Já não conseguirá sê-lo,
tem os anos contados,
o passo vacilante,
o fôlego curto.


Já demasiadas coisas se passaram
que se não deveriam ter passado
e não chegou
o que deveria ter chegado.

Devia ter-se tendido mais para a primavera
e para a felicidade, entre outras coisas.

O terror devia ter abandonado vales e montanhas.
E, mais rápida que a mentira,
Devia ter sido a verdade a primeira a chegar.

Houve desgraças
que já não deviam ter acontecido,
a guerra, por exemplo,
e a fome, e por aí fora.

Deveriam ter sido considerados
a capacidade de defesa dos indefesos,
a confiança e etc.

A quem quis alegrar-se com o mundo,
deparou-se-lhe um projecto
impossível de realizar.

A imbecilidade não é cómica.
A sensatez não é alegre.
A esperança não é já aquela rapariga fresca
e mais e mais, infelizmente.

Deus deveria finalmente ter confiado no homem
bom e forte,
mas o bom e o forte
continuam a ser duas pessoas.

Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.

Uma vez mais e como sempre,
como se vê no que acabei de dizer,
não há perguntas mais urgentes
que as ingénuas.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






19 abril 2018

luis muñoz / camisolas




Trocaram entre si a roupa
nos primeiros dias.

A T-shirt negra com os deuses astecas,
lembrança de um museu,
pelo pulôver fino e em bico
de listas amarelas com nervuras azuis.

O pólo anil gasto de há já cinco anos
pelo branco de seda, alado, com transparências,
de colarinho mole e grande.

Era como um abraço
apertado e ligeiro.
Acostumar a tua pele ao tacto da sua,
impô-lo ao sair, como uma carícia.

Ao descobrirem-se sós em encontros agridoces
com antigos amantes,
a doçura do outro soprava no tecido.
Ao descobrirem-se longe qual uma sombra débil
à beira das sombras,
o outro aparecia qual uma fortaleza.

Era a afirmação que sempre lhes faltava,
o toque permanente de alerta nos seus afectos.

E, isso sim, não escutaram
que ninguém lhes dissesse:
os fios da tarde tecem-se sem a tarde.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







18 abril 2018

daniel francoy / pássaros




Ando a falar de pássaros
como se não os tivesse afugentado
do quintal e do peitoril da janela,
como se soubesse que ave é aquela
– seria de rapina? – que vejo
em torno dos arranha-céus
há tantos anos.
Sempre a mesma criatura?
Alimenta-se do que lhe resta,
dorme na praça, entre as árvores
e a fonte de água escura
ou vejo toda uma descendência
alada, caída no desterro,
assinalando a distância da tarde?


daniel francoy
identidade
editora urutau
2016





17 abril 2018

t.s. eliot / o que disse o trovão



(…)

Quem é o terceiro que caminha sempre a teu lado?
Quando conto, só vejo nós dois
Mas quando olho adiante na estrada branca
Há sempre outro caminhando a teu lado,
Deslizando envolvido num manto castanho, embuçado,
Não sei se homem ou mulher
– Mas quem é que caminha a teu lado?

(…)




t.s. eliot
a terra sem vida
tradução maria amélia neto
edições ática
1972





16 abril 2018

rené char / evadne




O estio e a nossa vida éramos uma só coisa
O campo devorava a cor da tua saia perfumada
A avidez e o constrangimento tinham-se reconciliado
O castelo de Maubec enterrava-se na argila
Em breve soçobrariam os vaivéns da sua lira
A violência das plantas fazia-nos vacilar
Um corvo remador sombrio desviando-se da esquadra
Sobre o sílex mudo do meio-dia esquartejado
Acompanhava o nosso idílio com ternos movimentos
Em toda a parte a foice acedia ao repouso
A nossa raridade iniciava um reino
(O vento insone que nos enruga a pálpebra
Voltando noite após noite a página consentida
Quer que cada tua parte que eu retenho
Se estenda numa terra de idade faminta e de lacrimal gigante)

Era no início dos anos adoráveis
Lembro-me de que a terra nos amava um pouco.

         
rené char
furor e mistério
o rosto nupcial
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000







15 abril 2018

bernardo soares / apoteose do absurdo




Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.

E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






14 abril 2018

tereza balté / as visões


  
Que poderias trazer de novo
que consolação tu ou outro
se o tempo nos dispersa a sombra se insinua
se o rosto permanece envolto em sua coroa
se a lua circunscreve o sonho em sua aura
não é outro deserto não é outra palavra
que apaga a nossa chama inspira a nossa ferida
o mistério persiste no astro que ilumina.



tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977









13 abril 2018

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


  
51
um calendário sonegando o Verão
se por ele unicamente me guiasse inventaria
em segredo mais jubiloso almanaque

afastando-me do receio com que entregasse
dedicado o termo desta opereta


miguel-manso
persianas
tinta da china
2015








12 abril 2018

antónio reis / poemas quotidianos


  
52

Nascem
flores
dos beijos
nos teus ombros

e abelhas

E sombras


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017