04 abril 2015

josé antónio almeida / monólogo da oliveira



Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra

muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos

─ a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras

como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados

de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:

o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.



josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



03 abril 2015

agustina bessa-luís / oliveira, manoel de







  
É um visionário. O seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manuel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo.

*
Como um Bergman ou um Dreyer, ficará para sempre um mistério para os seus contemporâneos. Umas vezes é subtil, outras é sarcástico, raramente é amoroso e abandonado a um sentimento terno. Abandona-se à perfeição e nada mais. Há nele um empenho de contradição, o que faz a força da sua obra tão variada, tão inesperada e tão controversa.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



02 abril 2015

álvaro alves de faria / memória



A sorte que se joga
no dado permanente
na mesa desse jogo
o gesto e a serpente.
No número desse destino
que se quer sempre de frente.
A vida e a morte,
mais que naturalmente.
A veia que se corta
no pedido mais urgente,
o corte dessa gilete
na fuga incontinente.
O que se produz na saliva,
na boca da câmara ardente,
esse espectro mais escuro
do que era evidente.

Não cabe nessa memória
nem passado nem presente.
Só cabe o que não existe,
aquilo que se pressente.



álvaro alves de faria
poesia do mundo/3
edições afrontamento
2001



01 abril 2015

david mourão-ferreira / litania da sombra



Não perguntem nada: nós estamos dentro
do aro de frio, no frio do muro,
tão longe, tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
                                        Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
ergueram açudes nas águas do Mar…
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
ou fora de tudo.
                             Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre de gládios
                                      a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
                                E talvez perdidos.


david mourão-ferreira
memoriam memoriae
1962




31 março 2015

lawrence durrell / je est un autre



Ele é o homem que toma notas,
O observador de chapéu alto preto,
De rosto oculto pela aba:
Em três cidades europeias
Tem-me visto a mim a olhá-lo.

À esquina de uma rua em Buda e depois
Junto aos correios, um vislumbre
Das abas do casaco sumindo-se
Deu esclarecimento igual e, examinado,
O aperto na garganta.

Outra vez, num encontro ao pé do Sena,
Com as águas um chão de estrelas a mexer,
Quando eu cheguei à porta já se fora,
Mas no pavimento, e ainda aceso,
Lá estava um dos seus habituais charutos pretos.

O encontro na escura escadaria
Onde a maré corria escorreita como um tear:
O atraiçoá-la, os beijos dela,
A tudo ele assistiu: quantas vezes
O ouço rir no quarto ao lado.

Observa-me agora trabalhando até tarde
A dar vida a um poema; os olhos
Reflectem a doença de Nerval:
Inútil é nesta velha casa interrogar
Espelhos, a sua máscara impenetrável.



lawrence durrell
leituras
poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



30 março 2015

helena maltez / mulher



mulher em todas as horas
dás amor que liberta do teu peito.
és liberdade no saber querer ou dizer,
gritas às ilusões
navegas nas palavras,
és ancora em todos os mares.
mulher acreditas no verbo.
conjugas sentires,
despes-te do tempo,
sabes ser ponte de ligação
E unes as mãos em todos os espaços.
sem remos transmites melodia
onde o lógico é semente
sem garras de miragem
nos espaços conquistados por ti.
apagas os sonhos nefastos
por seres brilho constante,
virtude reflectida na vida
na razão de cada questão.
mulher és dádiva em todos os dias.



helena maltez



28 março 2015

frank o´ hara / ontem lá em baixo no canal



Dizes que tudo é muito simples e interessante
Isso torna-me muito melancólico, como se lesse um grande romance Russo
Estou tão aborrecido
É quase como ver um mau filme
Se não for, mais frequentemente, como ter uma doença aguda no rim
Valha-nos deus que não é nada do coração
Nada relacionado com gente mais interessante do que eu
Yak yak
Que pensamento divertido
Como pode alguém ser mais divertido que o próprio
Como pode alguém não ser
Podes emprestar-me o teu quarenta e cinco
Só preciso de uma bala de preferência de prata
Se não se pode ser interessante pelo menos que seja uma lenda
(mas odeio esta trampa toda)


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995




27 março 2015

fernando assis pacheco / com a tua letra



Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


fernando assis pacheco
cuidar dos vivos
1963





26 março 2015

manuel de castro / poema para uma fada do desencanto



mão marfilínea deslizando vagarosa
num gesto perfumado e secular
sincrónico com a voz múrmura
dolente cadenciada distante
leve agitar de palmeiras
em ilhas incógnitas e felizes
  
gesto perfumado vagaroso
indica oceanos percorre continentes
aldeias furtivas de exóticos países
veios d'água subtis porém apenas
no dúbio mapa de navegação

no tempo das gravuras gentis
no tempo dos luares
dos instrumentos musicais longínquos
um leopardo atravessou a cidade
nocturna
silenciosa
onde estátuas assombradas
reflectiam a luz mortal dos astros

indecisos rumores corrosivos
transportaram para o mundo da fácil realidade
a tristeza
a alegria
e a cidade

atravessada por um ágil leopardo
possui a temperatura móbil da beleza
agora inerme
bela e fria
agora lancinante e desesperada
como recordação do que soubemos não ter sido
mas guardamos no coração

 desejo exacto
a distância as coisas e os dias
lançaram-me de mim
à rigidez impávida dos mortos
meu gesto e teu calor e teu olhar

o sol contém a noite a lua e dia
e não procuro amor que agrado seja
mas sombra no teu corpo intocável
sombra esbatimento e a lembrança
que viverei que sofrerei perfeita
do percorrer monótono do tempo
da invenção oferecida apenas a si própria
do semblante variável do sentido
das pedras que muralha se constroem
minha indiferença meu amor distância
areia e mar dormindo sob a lua


                                            (Paralelo W)



manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002





25 março 2015

arthur rimbaud / meditações




Beijei a madrugada. Era Verão.
Diante do palácio, nada estremecia. A água estava parada. Os maciços de sombra não deixavam os caminhos dos bosques. Caminhei, acordando os hálitos tépidos e vivos; as pedras preciosas olharam, como asas levantaram-se no maior dos silêncios.



arthur rimbaud
meditações
tradução de madalena silva
alma azul
2009




24 março 2015

como se fosse na mesa dum café nos anos 70


Anos 70, muito jovem ainda. Partilhávamos os truques da resistência à ditadura fascista, espreitávamos o mundo pelas brechas do grande muro do fado, de Fátima e do futebol. Fazíamos o que podíamos para ler as grandes obras da literatura universal e conhecer o mundo oculto da ideologia. Comíamos croissants inebriados pelo cheiro da tinta no stencil denunciador dos crimes do fascismo. O pão quente era de madrugada à porta duma padaria de bairro. Líamos Herberto Helder, íamos ao Cascais Jazz, ouvíamos a grande música e tínhamos a certeza firme de que este país um dia seria melhor; limpávamo-nos do bafio das sacristias e livrávamo-nos da culpa da miséria. Nesse tempo as livrarias eram sítios onde se vendiam livros e os livros eram mesmo livros, os escritores mesmo escritores, os poetas mesmo poetas. E, pasme-se, os jornais eram mesmos  jornais  e os jornalistas eram mesmo jornalistas. Nesse tempo, Cultura significava instrução, saber e estudo.

Lembro-me da sensação de modernidade, de ar puro, e do modo tão novo de querermos ser portugueses assim, sentirmo-nos assim portugueses dessa maneira tão livre e tão criativa que se entranhava em nós depois de lermos “Os passos em volta”.  

Hoje, senti-me privilegiado por ter sido contemporâneo dum ser tão imenso, de ter podido conhecer a sua obra  no tempo exacto da sua criação e de poder testemunhar que, por causa dela, a minha geração, e muitas outras, trouxe a este país homens e mulheres muito melhores, muito mais justos e muito mais livres, numa maré libertadora que inundará com certeza a nossa eternidade como povo.

Sim, a grande revolução do século XX português foi a Poesia de Herberto Helder.     



gil t. sousa 



herberto helder / a verdade é que era uma criança




A verdade é que era uma criança, e não se aguentou
quando o médico disse: aguente-se.
E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz.
Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz,
e mesmo assim é triste.
É até mais triste que as outras. Estou tão triste.

Vamos para férias, para o pequeno paraíso. 

Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande
que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o
com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.


Era uma criatura excepcional.



herberto helder / (23-11-1930 /23-03-2015)

          



          Demão

  
          Retorna à escuridão
          o rosto: entre centelhas, ficasse tão maduro quando
          de te tragar
          estremecesses, que o animassem
          os elementos: um interior: um limite do mundo,
          e se afinasse como um galho de marfim
          cheio de lume, que fosse um instrumento
          de crescer na terra: um golpe
          nela, abraço
          com a mão coroada,
          até à bolsa com a lua dentro,
          no ovo está o astro, se pelos dedos
          nesse rosto
          te plantasses todo na riqueza do sono,
          soldado a nervos: osso, feixe de fibras
          tímpanos, e as faíscas saltando pelas unhas
          as deixassem ígneas,
          e a veia arpoasse igneamente a massa
          muscular, ou
          a aorta sorvesse a matéria
          tremenda
          ao seu abismo, e te encharcasse até ás pálpebras
          essa púrpura por válvulas
          contra os dentes. nos fundamentos há
          vezes
          em que és ligeiro ao movimento da água,
          ou nas paredes onde os canos se cruzam
          como um corpo onde se cruzam órgãos
          tubos, um alento das coisas: dos tecidos
          do mundo, e por exemplo se a louça e o inox
          brilhados de dentro: à mesa
          e a madeira respira mais rápida
          e uma grande massa orgânica magnifica
          cercada de membros
          como um homem
          essas  pinças na cabeça entre as meninges
          extraindo uma estrela,
          os canais luminosos da cabeça
          iluminam-te todo, iluminas-te
          quando se arranca a língua e há um soluço da fala,
          levantas-te soberbamente
          ao rosto, como a vara
          do vedor fica acesa
          pelas ramas de água, como que salga
          o aparelho do corpo
          e o torna substância
          alta giratória ou se fulgura a trama
          cristalográfica
          terrifica da musica se levanta
          entre os dedos e cordas
          fundido de sangue e ar no escuro:
          música
          o medo do poder, esta ferida
          tão de um nó de músculos estrangulando
          uma leveza
          o barro violento, a manobra
          das vozes. Fechas os olhos e as
          coisas não te vêem,
          as mãos brilham-te abertas.
  


          herberto helder