Mostrar mensagens com a etiqueta josé antónio almeida. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta josé antónio almeida. Mostrar todas as mensagens

03 maio 2017

josé antónio almeida / carne de porco



à maneira de Kavafis


Educado na contemplação das belas estátuas gregas
dos efebos de mármore da antiguidade clássica
e instruído na leitura dos poetas e filósofos
de ortodoxa e severa obediência platónica,
especialista em vasos com erómanos e erastas
e nas biografias dos discípulos do amor socrático,
ao cruzar-se com um desconhecido busto feminino
que misteriosamente recorda a proa de um navio
sulcando a multidão cinzenta das avenidas novas,
ele observa-o na outra margem da corrente de carros
perto do sinal vermelho do semáforo luminoso,
devorado pela curiosidade e por um estranho
apetite de provar o interdito sabor da fêmea
como um judeu proibido de comer carne de porco.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990



13 novembro 2015

josé antónio almeida / à mesa



À mesa do restaurante, sentado com o meu pai,
sem trocarmos entre nós uma única palavra,
chamei o empregado para pedir o almoço.
Então uma coisa inesperada aconteceu:
uma cara angélica aproximou-se de mim.
Via-se a silhueta do corpo sob a camisa
transparente e de mangas curtas, desabotoada
no colarinho e os primeiros botões de cima.
Concentrei-me com atenção nas oportunidades
Todas que me dava aquela situação de freguês
para olhá-lo e falar-lhe e até sorrir-lhe.
Encheu-me uma felicidade incongruente
Com aquela refeição que não era o banquete
que o outro pai partilhou com o filho pródigo.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




04 abril 2015

josé antónio almeida / monólogo da oliveira



Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra

muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos

─ a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras

como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados

de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:

o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.



josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



09 maio 2012

josé antónio almeida / ao anoitecer






Sou um velho rato celibatário
─ a lei não me permite casamento.

Outros encontram sem dificuldade
o universo pronto a vestir
  
logo de manhã, desde que nasceram.
Depois trajam todas as convenções

─ que lhes assentam bem, do colarinho
às mangas, até parece que Deus

é um alfaiate por conta deles.
A nós, a melhor roupa fica mal

─ em nenhuma loja vendem sapatos
que nos deixem ir noutra direcção,

nem anel que não faça propaganda
à ordem sempre «natural» do mundo.






josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010