20 junho 2013

ricardo reis / estás só



Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

  

ricardo reis



19 junho 2013

t. s. eliot / the four quartets

   

   O tempo presente e o tempo passado
   Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
   E o tempo futuro contido no tempo passado. 
   Se todo o tempo é presente eternamente,
   Todo o tempo é irredimível.
   O que podia ter sido é uma abstracção
   Que fica em perpétua possibilidade
   Apenas num mundo de especulação.
   O que podia ter sido e o que foi
   Apontam  para um só fim, sempre presente.
   Passadas ecoam na memória,
   Descendo o caminho que não tomámos
   Em direcção à porta que nunca abrimos
   Do jardim das rosas. Assim ecoam
   As minhas palavras na tua mente.
                                       Mas qual o desígnio,
   Turbando o pó de um vaso com folhas de roseira,
   Não sei.
   (...)
   Aquilo a que chamamos princípio é muitas vezes o fim
   E fazer um fim é fazer um princípio.
   O fim é de onde começámos. E cada expressão
   E cada frase que está certa (onde cada palavra em sua casa
   Ocupa o lugar em que sustenta as outras,
   Sem desconfiança nem ostentação, a palavra,
   Um comércio fácil entre o velho e o novo,
   A palavra comum exacta e sem vulgaridade,
   A palavra formal precisa e não pedante,
   Os cônjuges completos dançando em conjunto),
   Cada expressão e cada frase é um fim e um princípio,
   Cada poema, um epitáfio. E toda a acção
   É um passo para o patíbulo, para a fogueira, pelas goelas do mar
                                                                                  [abaixo
   Ou para uma pedra ilegível: e é aí que começamos.
    Morremos com os que morrem:
   Vê, eles partem e nós vamos com eles.
   Nascemos com os mortos:
   Vê, eles regressam e trazem-nos com eles.
   O momento da rosa e o momento do teixo
   São de igual duração. Um povo sem história
   Não se redime do tempo, pois a história é uma teia
   De momentos intemporais. Por isso, enquanto a luz se extingue
   Numa tarde de Inverno, numa capela isolada,
   A história é agora e a Inglaterra.

   Com o atrair deste Amor e a voz desta Vocação
   Não cessaremos de explorar
   E o fim de toda a nossa exploração
   Será chegar aonde começámos
   E conhecer o lugar pela primeira vez
   Pelo portão desconhecido, relembrado,
   Quando o último da terra partiu para descobrir,
   É aquilo que era o princípio;
   Na nascente do mais longo rio
   A voz da cascata oculta
   E as crianças na macieira
   Não conhecidas porque não procuradas,
   Mas ouvidas, semiouvidas na quietude
   Entre duas ondas do mar.
   Depressa agora, aqui, agora, sempre -
   Uma condição de total simplicidade
   (que custa nada menos do que tudo)
   E tudo estará bem e
   Toda a espécie de coisas estará bem
   Quando as línguas de chama se enlaçam
   E recolhem ao nó de fogo coroado
   E o fogo e a rosa são um só.



   t. s. eliot
   the four quartets
   leituras poemas do inglês
   trad joão ferreira duarte
   relógio d'água
   1993



18 junho 2013

armando silva carvalho / lentamente



LENTAMENTE arrasto a ruptura do mundo
com o terror do século
e o olhar atravessado
pela demência.
retiro da cabeça partículas de sexo,
incrustações de vício,
pequenas rotações de amores
menores.
E sento-me,
a decifrar o tédio.
A beber, feliz, a luz dos sacrifícios.


armando silva carvalho
canis dei 1995
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



17 junho 2013

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança


(...)

Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

É meiga e calada, sem nada a apontar,
Estremece à vossa aproximação;
Mas quando eu volto, daqui, dali, da festa,
Ela dá um passo, depois fecha os olhos -
      e dá um passo.
Porque ela é o meu amor, e as outras mulheres
Só têm vestidos de ouro sobre grandes corpos
      de chamas,
A minha pobre amiga está tão desamparada
Está toda nua, não tem corpo - é demasiado pobre.
É uma flor cândida, delgada,
A flor do poeta, um pobre lírio de prata,
Muito frio, muito só, e já tão seco
Que as lágrimas brotam se penso no seu coração.




blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança.
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974



16 junho 2013

álvaro de campos / clearly non-campos!



Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que se vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último e acabam.




álvaro de campos


15 junho 2013

benjamin péret / tempo diferente



O sol da minha cabeça é de todas as cores.
É ele que ilumina as casas
de palha
onde vivem os senhores saídos das crateras
e as belas mulheres que em cada dia nascem
e em cada tarde morrem
como os mosquitos.
Mosquito de todas as cores
que vens tu fazer aqui?
O sol este sol é para cães
e o calor sacode as montanhas
enquanto as montanhas nadam
sobre um mar pleno de luzes
onde o calor e o peso da vida
não existem
onde eu não meteria nem a ponta do meu pé.



benjamin péret
(frança, 1899-1959)
tradução de nicolau saião



14 junho 2013

luís miguel nava / o uivo



Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002


13 junho 2013

paul éluard / para exemplo



É certo que desde sempre
Aos dias são sem amor
Cada aurora imperdoável
Cada carícia infame
E cada riso uma injúria

Ouço-me e tu me ouves
Uivar como um cão perdido
Contra a nossa solidão
O nosso amor precisa mais
De amor que a erva da chuva

Ele precisa de ser um espelho



paul éluard
poemas de amor e de liberdade
trad. egito gonçalves
campo das letras
2000


12 junho 2013

rui caeiro / a dois passos



Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso — esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno — estava-se bem.



rui caeiro
do inferno – cinco aproximações
telhados de vidro nr. 12
maio 2009
averno



11 junho 2013

mário botas / setembro


     "Seldom we find" says Solomon Don Dance
       "Half ann idea in the profoundest sonnet"
       E.A.Poe


  
A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra,
correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu
deuses de papelão sentando-se a meu lado.

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?

(1980)



 mário botas

poema publicado no blogue quartzo, feldspato e mica
poema oferecido por mario botas a nicolau siao



10 junho 2013

antónio josé forte / reservado ao veneno




Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras



antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958


09 junho 2013

rui costa / a trapezista



Começou a subir aos telhados.
Começou a resolver neles muito tempo.

(Primeiro, os dedos na janela mais acima.
Depois, era o cabelo que subia.
Um pulso a içar a alma para outra cidade.)

Daqui vê-se tudo.
Os gatos deitam-se e lambem-me os pés.

Os pés sobem molhados pela chuva.
Os homens congeminam negócios estendidos nas mulheres.

As crianças gritam dentro das casas quando os sonhos
lhes arrancam pedaços das costas.

Os homens caminham com quadros pendurados nos joelhos
As pessoas escrevem artigos nas revistas
sobre o que seria o mundo se alguém do outro lado as ouvisse

E é então que eu saio
e sobre os ombros das árvores disponho a economia
cravando-lhe os dentes ou
roçando apenas o meu sexo
no trapézio

Inclino-me sobre a sua demência particular
neste dia emparedado entre sucessos e crisântemos
e as crises
e ouço as ruas onde lá em baixo uma pessoa
ajeita um pouco melhor os ossos

Aquela mulher fabricou uma cozinha resistente a tudo
atravessou os séculos assoberbada de electrodomésticos
inexpugnáveis – ao fim-de-semana envolvia-os em celofane e espanava
um pouco melhor os filhos.

Mais à frente o parque onde as estratégias se apresentam -
o presidente à frente, seguido pelo hidrogénio ou o hélio
– conforme a posição do sol no buço da democracia –
e o écran reflectindo o écran e a
maresia.

Aqui no alto rodo os pés e alongo mais os braços.
Nos primeiros meses estendia-me com o corpo para baixo e deixava
o sangue inundar a cabeça. Via manchas vermelhas da
menstruação por entre os amigos que prometia esquecer.
Eles traziam-me os seus corpos nus e eu aquecia as suas unhas
cravadas pelo vidro.

Dizem: se os videntes permanecem firmes perante pequenos tiranos
podem chegar a suportar a presença do incognoscível.
Todo o conhecimento é o resultado de uma deslocação.
Se é verdade que todos os caminhos são iguais?
Sim. Pois não te conduzem a lugar nenhum.
Se quiseres fazer como o feiticeiro índio da tribo iaqui,
perguntarás: e esse caminho tem coração?

Perdi a minha agenda de fenómenos electromagnéticos.
Não sei por isso de que lado esperar
este súbito irromper
da melancolia.



rui costa
metphoria
guimarães2012
fundação cidade de guimarães
outubro 2012


08 junho 2013

gil t. sousa / mas chegam pela água


18

mas chegam pela água
as folhas
e ele
tão só e tão forte
guarda nas mãos
(talvez nas mãos)
o mistério lento das cores
tem nos olhos
a inquietação anunciada
das árvores
escreve estações
no ser que deserta
as ruas
e passa
ainda passa

como se fosse
à vida



gil t. sousa
água forte
2005