10 outubro 2012

seamus heaney / a forquilha


  

Era a forquilha, de todas as alfaias,
A mais parecida com a perfeição imaginada:
Quando apertava a mão erguida e apontava
Ele sentia-a certeira e leve, como um dardo.
Brincasse, então, de atleta ou de guerreiro,
Ou trabalhasse a sério na palha e no suor,
Ele adorava-lhe a textura, a cor do freixo
da fina haste acetinada pelo uso.
Aço batido, madeira ao torno, lustre, toque
Do que é suave, recto, brando, luzente e esguio.
Suado, afiado, calibrado, posto à prova.
Em dinâmica tensão, presto e exacto.
E se ele pensava numa sonda nos confins,
Via o cabo de uma forquilha navegando
Serena, imperturbável pelo espaço,
Estrelas nas pontas e em silêncio absoluto -
Mas aprendeu enfim a seguir tão simples pista
Além do seu alcance, para um outro lado
Onde a perfeição - ou quase isso - se imagina
Na mão a abrir, que não a apontar.



seamus heaney
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução rui carvalho homem 
assírio & alvim
2001


09 outubro 2012

josé miguel silva / para agradar a uma sombra


  

                              Isn ‘t it just like love?
                                        The Psychedelic Furs



Agora que já chorei o meu papel de solitário
posso virar a folha e declarar que, na verdade,
eu nunca estive sozinho. Tive sempre a boa companhia
da minha sombra. E não posso dizer
que nos déssemos mal: uns dias pior, outros pior.
Como todos os casais. Tínhamos (e temos)
a mesma idade, os mesmos gostos musicais,
um amor paralelo por fogo de lenha,
líamos os livros a meias, quase não gastávamos
nenhum oxigénio.

Dos dois era ela quem insistia, às vezes,
para irmos dançar. Mas eu, é claro, detestava
o tremedal das discotecas; amava mais depressa
o movimento descritivo dos romances
do que a Iuz hipotecada de um corpo distante.
Com o tempo, no entanto, foi crescendo esse litígio.
As nossas relações foram perdendo vulto
à medida que ela convidava mais gente
para a nossa cama. Até que um dia chegou a casa
e apresentou-me “o amor da nossa vida; agora
somos três”. E assim a minha sombra,
a minha ingrata começou a dizer coisas Iacerantes.
Por exemplo: “Vai tu ao cinema. Nós ficamos.”
Ou então: “Bem podemos, de vez em quando,
caminhar separados, ou não achas?” E fecha-se
no quarto com a outra, em colóquios ofegantes.
Altura em que, de raiva, saio porta fora.

Uma vida a três é talvez menos longa do que uma vida
a dois. Há um milímetro agora de distância entre mim
e a sombra. O espaço bastante para um raio de luz.
Não ficamos, realmente, pior do que estávamos.
Mas chega a ser enjoativo ver o trevo cor-de-rosa
que semeiam no quintal, felizes como duas estrelinhas
de cinema. Nem sei o que diga. Parecem crianças.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003



08 outubro 2012

luis muñoz / fixações





Telefona-me à meia-noite.
Escuto o lamber do vento
através do telefone, como um cachorro ansioso,
e a sua voz transparente na cabina.

Há em frente ─  diz-me ─
um armazém de chapa
com forma de garrafa,
um terreno com escombros
branqueados de gesso,
umas casas cúbicas como dados sem uso
e três ou quatro pinheiros calcinados
da cor do remorso.

Estas poucas imagens
fixam-me à sua ausência
como devem fixá-lo ao facto de estar só.

No meu quarto de livros clareados
pela luz de moeda da lua,
provoca uma pontada:
─  Estou atrás de ti ─  diz-me ─
e em redor de tudo isto.




luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



07 outubro 2012

ricardo de pinho teixeira / a véspera


  


Sirvam os que servem!
Sejam escravos dos próprios escravos!
Que as vossas mãos sejam as sandálias
para  os pés descalços dos enfermos!
Façam do vosso descanso o leito do Rio
onde correm as lágrimas dos que perdem
sempre!
Escolham. Façam do vosso corpo um
Templo ou um sepulcro! (…)
Eis o que sou: Uma véspera constante de
mim próprio!
Um adiamento de algo que amo…
Mergulho as minhas mãos em algemas,
como se todos os crimes acontecessem por
eu continuar a respirar…
Entrego-me!
Rendo-me na praia a um futuro incerto…




ricardo de pinho teixeira
flores de carne
corpo
vila nova de gaia
2001




06 outubro 2012

manuel antónio pina / o país das pessoas de pernas para o ar


O Menino Jesus não quer ser Deus



O menino Jesus não fugia à escola.
Os outros meninos juntavam-se para fazer maldades,
o menino Jesus ficava sempre de fora.
Os meninos tinham pena dele, mas tinha que ser assim:
ele era Deus, e Deus não pode fazer determinadas coisas.
Por isso, o menino Jesus não ia para o rio roubar fruta,
nem dizia coisas indecentes. Nem sequer podia jogar à bola
com os outros, porque fazia sempre milagres.

Até que um dia o menino Jesus foi ter
com S. José e disse-lhe:
- Pai, não quero ser mais Deus.
- Isso não é comigo, é com a tua mãe.

Foi ter com a Virgem Maria. Mas ela disse-lhe:
- Agora já és Deus e pronto. Já não se pode fazer nada.
Tu hás-de habituar-te, a mim a princípio também
me meteu confusão. E agora vai estudar,
porque amanhã tens que ensinar os doutores da lei.

O menino Jesus ficou muito triste e nessa noite
não estudou nada. O milagre dos doutores
por pouco ficava estragado. Nossa Senhora zangou-se
e disse-lhe que o acusava à pomba.
Mas ele, como era Deus, sabia tudo; portanto,
sabia que as pombas não fazem mal a ninguém
e ria-se da Virgem Maria. S. José também lhe dizia:

- Não metas medo ao rapaz. Não te calas com o diabo
da pomba, tu és mas é maluca.
- Não tens nada com isso. Ainda se o menino fosse
teu filho, mas não. Falas só para questionares, és mau.
Daqui a pouco começas para aí a dizer porcarias.

Mas estas discussões acabavam sempre bem,
porque o menino Jesus fazia um milagre.

Um dia pediu  à mãe um irmão, mas ela respondeu-lhe de maus modos.

Os vizinhos riam-se muito de S. José,
faziam troça de S. José por o filho dele ser filho de uma pomba,
e como S. José era muito bom,
o menino Jesus tinha pena e fazia mais milagres.

Um dos vizinhos tinha um filho muito mau
chamado Alberto Caeiro, que nunca ia à escola,
que se metia com as raparigas. O menino Jesus
tinha muita inveja dele porque ele sabia nadar como ninguém
e era dono duma caverna ao pé do rio.

Às vezes ia espreitá-lo e via-o lá dentro com as raparigas.
Acendiam fogueiras, comiam. O que o menino Jesus mais queria
era ser um rapaz como ele. Mas a mãe queria que ele fosse Deus
e o Deus que estava no céu também queria que ele fosse Deus,
porque alguém tinha que viver aquela vida
que estava escrita nos livros, uma vida pequenina
(só durava 33 anos) e ainda por cima que acabava mal!
O menino Jesus sabia tudo isto porque era Deus, e podia adivinhar.

Como era muito bom, não queria zangar a mãe,
nem aborrecer o pai do céu. Mas também não queria ser mais Deus,
porque ele é que sabia o que aquilo era.
E então começou a convencer o outro rapaz a trocar com ele.
O outro a princípio não queria, bateu-lhe, etc..
O menino Jesus podia ter feito um milagre,
fazer-lhe cair o braço, ou chamar as legiões de anjos todas.
Mas não. Disse-lhe assim:

- Ou trocas comigo ou transformo-te num porco.

O rapaz ficou assustadíssimo e fugiu para casa.
Mas o menino Jesus fê-lo voltar para trás com um milagre.
E voltou a dizer-lhe:

- Já sabes. Agora escolhe.

O outro estava muito aflito. Ofereceu-lhe a caverna,
ofereceu-lhe tudo. Mas o menino Jesus não quis.

- E depois eu, também posso fazer milagres?
- Sim, disse o menino Jesus.
- Então obrigo-te a destrocar outra vez comigo.

E quando disse isto julgou que tinha vencido o menino Jesus.
Mas o menino Jesus disse:

- Agora ainda sou Deus. E posso fazer um milagre. Esse milagre
é que tu não possas nunca obrigar-me a destrocar .
- Está bem, disse o outro.

Foram sozinhos para a floresta e lá fizeram a troca. O menino Jesus
ficou o outro, e o outro ficou menino Jesus.
E vieram por aí fora a conversar os dois.

E só depois é que viram: afinal de contas não tinham trocado nada,
porque o menino Jesus só fazia coisas perfeitas
e a troca fora tão perfeita que tinha ficado tudo na mesma.
E o menino Jesus, o de agora, voltou para casa muito aborrecido.
Afinal o pai do céu era mais esperto do que ele. E fez
mesmo umas figas, coisa que nunca tinha feito na vida,
Quando, ao deixar as últimas árvores da floresta,
viu uma pomba muito branca que levantava voo, fugia.

- Oh, disse ele quase a chorar.





manuel antónio pina
o país das pessoas de pernas para o ar
a regra do jogo
1978



05 outubro 2012

gil t. sousa / o país das pessoas de pernas para o ar



Devido aos acontecimentos do dia, lembrei –me de ir  à procura do livro de Manuel António Pina, O País das Pessoas de Pernas para o Ar, talvez para saber como é que nesse país se hasteavam as bandeiras…  Corri tudo mas não o encontrei .

Desanimado, subi as escadas e fui para a rua comemorar a República. Cheguei já tarde, as mãos doridas de tanto caminhar.



vladimir maiakówski / poema póstumo


  


Duas horas em breve.
                Estás deitada, talvez.
Na noite,
                como um Oka de prata
                             a Via Láctea corre.
O tempo é meu, e os relâmpagos
               que eram meus telegramas,
não mais te virão
               despertar,
                                 atormentar.
Como se diz:  encerra-se o incidente.
A canoa do amor
               foi-se quebrar de encontro ao quotidiano.
Eis-me quite contigo.
               E é inútil o passar em revista
penas,
               azares,
                                 e recíprocas feridas.
Vê,
               que paz no universo.
A noite
                impôs ao céu
                                  a servidão de tantas
                                                  tantas estrelas.
Chegou a hora
                em que a gente se ergue e em que fala
aos séculos,
                à História,
                               ao universo...





vladimir maiakówski
autobiografia e poemas
trad. carlos grifo babo
presença
1974



04 outubro 2012

albano martins / visitação


  
Quando a porta se abriu,
perguntaste quem era.

Não se pergunta ao amor
que nome tem.



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




03 outubro 2012

inês dias / nostalghia





Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encandeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
Riscavas outro fósforo ─
ele avançava dentro de ti,
 nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.




inês dias
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012




02 outubro 2012

josé régio / poema do silêncio


  

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
 (Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, manietado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.




josé régio
as encruzilhadas de deus
portugália
1957


01 outubro 2012

cruzeiro seixas / anos e anos esperou impaciente




Anos e anos esperou impaciente
no lago de folhas mortas.

Impaciente foi abrindo os olhos seus
e também os dos cardos companheiros
anos e anos.

Aprendeu a ler com finos dentes
e escreveu na carne das montanhas mais distantes
o mistério dos monstros
emparedados atrás do sol.

Quando chegaram os anjos
oscilava no espaço branca
uma nuvem de navios naufragados
e de milhões de criaturas em chamas.

Depois o lago fechou-se sob o prado azul
fechado sob o sonho do viajante infernal.




cruzeiro seixas
o que a luz oculta
galeria arte & manifesto
porto, 30 de setembro de 2000



30 setembro 2012

maria gabriela llansol / sua paixão é ter paixão



  
100

Sua paixão é ter paixão, não uma paixão. Tanto
Quanto um traço pode ser explícito. Vê-se na
Relação entre o fora e o dentro. Rapaz a pique,
O dentro emite, o fora transparece, o dentro
Recebe para emitir uma vez mais e não se repetir.
Ar, sangue, pulsações, estratégias giras de
Conhecimento, uma acção radical por dia,
Várias ogivas prontas a dar. E ela disse-lhe:
«Ok! E se deixasses de esmolar?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




29 setembro 2012

josé de almada negreiros / rosa dos ventos


  


Não foi por acaso que o meu sangue que veio do sul
se cruzou com o meu sangue que veio do norte
não foi por acaso que o meu sangue que veio do oriente
encontrou o meu sangue que estava no ocidente
não foi por acaso nada do que hoje sou
desde há muitos séculos se sabia
que eu havia de ser aquele onde se juntariam todos os
                                                    [ sangues da terra
e por isso me estimaram através da História
ansiosos por este meu resultado que até hoje foi sempre
                                                                     [ futuro.

E aqui me tendes hoje
incapaz de não amar a todos
um por um
que todos são meus e me pertencem
e por isso mesmo não lhes perdoo faltas de amor!
Mas porque maldição me não entendem
se eu os entendo a todos?
Eu sei, eu sei porquê:
Falta-lhes a eles terem, como eu, a correr-lhes pelas veias
                                            [todos os sangues da terra.
mas, ó maldição que pesa sobre mim,
cada um dos sangues da terra não me inclui entre os seus!
Não pertenço a nenhum sangue de raça
sou da raça de todos os sangues,
o meu amor não tem condições que excluam criaturas
não é amor natural
é amor buscado por boas mãos
desde o primeiro dia das boas mãos
através de tempos desiguais e de estilos que se contradizem
com os olhos no futuro melhor
e a esperança convicta de que se ainda hoje não são todos
                                                                      [como eu
é questão apenas de a humanidade viver outra vez
tanto como viveu até hoje
ou de mais ainda,
é questão de mais tempo,
ainda mais tempo,
é o tempo que há-de fazer
o que apenas se pode atrasar.

Entretanto deixai que se convençam
aquelas experiências que ainda não se tinham feito
e ainda tão longe do realismo da redondeza da terra!
Entretanto deixai que os números se espantem
de que a totalidade seja sempre ainda mais pr'além!
Deixai os números instruir-se da verdadeira capacidade
                                                               [do infinito
deixai que a ciência prossiga em sua loucura galopante
explicando todas as suas falhas com desculpas geniais
enquanto não esgota a sua especialidade,
a especialidade de nos meter a todos nela,
o que é um estilo
um estilo mais
e não o último
porque nenhum estilo é o último senão a liberdade!

Deixai que milhões se juntem para formar uma força
enquanto outros isolados se reconheçam o bastante para
                                                          [ ter a liberdade,
deixai-os a ambos que nada os deterá,
eles são duas metamorfoses minhas
das quais ainda conservo uma vaga memória.

Tal qual eles agora, eu já estive num e noutros antigamente,
quando na História
nos altos e baixos da minha ascendência
tomei também cada metamorfose minha
por minha definitiva realidade.
Deixai primeiro que o sangue deles
leve tanto tempo a dar a volta ao mundo
como o que levou o meu sangue
ou a História do Homem.

Deixai que a natureza consinta ainda em parcialidades
que o tempo consente temporariamente.
Deixai que o ardente desejo de totalidade, não possa ainda
                      [funcionar senão pelo meio ou pelas pontas.
Deixai que cada especialidade acabe de vez com a sua
                                                         [impertinência
Deixai que os sangues mais intactos morram por isolamento
ou espalhem morte e terror com o verdadeiro medo,
                                            [a certeza de acabar.
Deixai que a Democracia e a Aristocracia
se cansem de não caber isoladas em parte nenhuma
já que não cabem juntas no nosso entendimento.
Deixai que Uma e Outra esgotem todos os quadriláteros
onde a Democracia não cabe
e, por conseguinte, a Aristocracia não sai.

Deixai sumir-se até ao fim a confusão de Nobreza e
                                  [Fidalguia com Aristocracia.
Deixai que a Democracia repare que é um corpo sem
                                                               [ cabeça
e que a Aristocracia uma cabeça sem corpo.
E é o corpo que há-de buscar a cabeça
ou a cabeça que há-de buscar o corpo?
Esperai que venha esta resposta.

Entretanto deixai que a liberdade também esteja à espera
                                                            [desta resposta.
Deixai que se expliquem por si coisas terrenas que nada
          [mais ultrapassem do que o nosso entendimento
condenado a acreditar nos sentidos
mais do que em todo o trajecto desde o princípio do
                                                  [mundo até hoje.






josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971