12 junho 2012

werner aspenström / a sardinha no metropolitano



  
Não quero lavar-me com esse sabonete!
Não quero usar essa pasta de dentes!
Não quero dormir naquele sofá-cama!
Não preciso desse papel higiénico!
Não estou interessado nessa apólice!
Não penso mudar de marca de cigarros!
Não me apetece ir ver aquele filme!
Recuso-me a sair em Skärholmen!

A sardinha quer que a lata
seja aberta em direcção ao mar.




werner aspenström
(suécia, 1918-1997)
tradução de vasco graça moura



11 junho 2012

wallace stevens / hibiscos nos litorais adormecidos






Agora eu digo, Fernando, que naquele dia
O espírito vadiava como vadia uma traça,
Entre as flores para lá do areal imenso;

E que o mínimo rumor do vaivém das ondas
Nas algas marinhas e nas pedras submersas
Não incomodava nem o mais ocioso ouvido.

Foi então que aquela monstruosa traça
Que ficara imóvel pregada no azul
E no púrpura colorido do mar preguiçoso,

E dormitara ao longo de litorais ossudos,
Surda para a conversa que as águas fiavam,
Se ergueu perlada e buscou o rubro ardente

Salpicada de pólen amarelo ─  tão rubro
Como a bandeira no cimo do velho café ─
E por ali vadiou toda a estúpida tarde.





wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006




10 junho 2012

josé tolentino mendonça / uma coisa a menos para adorar





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

  


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999

09 junho 2012

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio III






No bosque há uma ave, o seu canto
detém-vos e faz-vos corar.

Há um relógio que não toca.

Há uma lixeira com um ninho de
bichos brancos.

Há uma catedral que desce e um lago
que sobe.

Há um carrinho abandonado nas moitas,
ou descendo a vereda em correria,
engalanado.

Há uma troupe de pequenos cómicos
com os seus fatos, visíveis sobre a estrada
através da orla do bosque.

Há, enfim, quando tens fome e sede,
alguém que te enxota.




jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



08 junho 2012

jean cocteau / dorso de anjo





Em sonhos rua que encanta
e uma trombeta irreal
mentiras são que levanta
um anjo celestial.

Que seja sonho ou não seja,
logo a mentira se afunda,
se a gente de cima o veja,
que todo o anjo é corcunda.

Pelo menos é-o a sombra
na parede do meu quarto.





jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978


07 junho 2012

edmundo de bettencourt / circunstância





Do clarão que é das ruínas,
pelo escuro,
uns pedaços se unem em fio estendido, serpente
um dia já sangue erguendo e triturando o edifício.


Eis um mar que se abisma
que a si próprio se engole
e a si próprio se vomita
com uns destroços de galera.

Ruínas…
no clarão que as ilumina,
aos poucos se dilui um fio com princípio e fim.
Mas, a acabar, ainda resplandece
na chave que abre a porta aos pesadelos!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981



06 junho 2012

thom gunn / a destruição do nada


  


Nada é o que permaneceu: nada, o arrojado epíteto
Que pronunciei pela noite tantas vezes até ser transportado
Para um escuro sono, ou o sono que continha um sonho.

Nisto havia uma enorme ausência contagiosa,
Mais espaço do que espaço, sobre a nuvem e o lodo,
Definidos apenas pela sua excessiva oscilação.

Despojado até à indiferença nas curvas do tempo,
Cujo fim eu conhecia, acordei sem um desejo,
E saudei o zero como um paradigma.

Mas agora despedaça-se: as imagens surgem incendiadas
Na calma esfera onde tenho vivido,
Regulando a paisagem ainda intacta:

O poder que imaginava, que presidia
Supremo a devastações abstractas,
É apenas uma mudança; os átomos que o dividiam

Completam, sem o saber, novas combinações.
Apenas descubro uma infinita finitude
Naquelas variações belas e estranhas.

É o desespero de que o nada possa existir
A cintilar no espírito e a deixar uma marca fumegante
De temor.
               Olhem para cima. Nem presa nem liberta.

Uma questão inútil paira nas trevas.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


05 junho 2012

miguel serras pereira / após o mar


  


Perdeu-se após o mar a nostalgia
de sermos pelo menos na hora do desastre
um voo de marinheiros caindo ainda
vencidos e longínquos ─  como o dia
sobre o rasto vermelho das amadas

E mesmo onde te encontro a despedida
corta as minhas mãos abertas pelas tuas
Passam as aves e passada a minha vida
procura o chão ardente da cidade
onde eu possa ser contigo as mesmas ruas

Entretanto esperamos apenas ─ árvores tristes
divididos um pouco mais a cada encontro
Eu parto e digo-te à partida amada que resistas
decepado sobre a terra e sobre ti
terra que deceparam do meu sangue

Mas a esperança que nos vem dentro do vento
desperta a voz da morte no regresso
Por isso somos hoje tão sábios e tão lentos
que as gaivotas nos poisam na cabeça






miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993




04 junho 2012

ernesto sampaio / o fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria


  



    O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
    poro da aurora
    Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
    Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
    dos tempos
    E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
    mar das grandes lanças de água
    É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
    véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
    São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
    É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
    com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância
    e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra
    em cada cama onde morremos juntos

    Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
    de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
    Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
    pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
    Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
    cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
    Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
    puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
    Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
    que esmaga e canta e ninguém deterá

    Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
    sinal vermelho
    Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
    porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
   Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
    minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas
   meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de   meteoros
    meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra
    minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos
    minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa
    minhas nádegas de noite e de loucura
                                           
                                            MEU AMOR

    Habito a lealdade dos presságios
    Começo a ser um bom leito para o meu sangue





ernesto sampaio
you are welcome to elsinore
poesia surrealista portuguesa
antologia de perfecto e. cuadrado
edicións laiovento, compostela
1996





03 junho 2012

heiner müller / coração das trevas segundo joseph conrad




                              Para Gregor Gysi

                 Mundo tenebroso, mundo capitalista
                 ( Gottfried Benn, num diálogo radiofónico
                  com Johannes R. Becher em 1930 )



No Valuta-Bar do Hotel METROPOL
Em Berlim capital da RDA uma puta polaca
Trabalhadora imigrada tenta dar a volta
A um velho às voltas com uma constipação
Entre os capítulos da sua conferência
Sobre a liberdade nos Estados Unidos
Limpa o ranho ao lenço e grita pelo balde do lixo
Ainda abalado com a pena que me faz a sua pesada profissão
Ouço dois homens de negócios em viagem
Pelo sotaque vêm da Baviera
Dividir a Ásia entre si: BOM, A MALÁSIA VINHA MESMO
    A CALHAR
E A TAILÂNDIA TAMBÉM E A COREIA É MAIS UMA
    FATIA DO BOLO
É, E O SISTEMA DE CALHAS EM CRUZ PARA O IÉMEN
AINDA ERA CAPAZ DE O INCLUIR NO PLANO, ASSIM
    A COISA FICAVA COMPOSTA
                                                      E A CHINA TAMBÉM NÃO
    FICA DE FORA
A CHINA FOI O ÚNICO PROJECTO QUE SE VENDEU
Na estação do metro JARDIM ZOOLÓGICO/
    FRIEDRICHSTRASSE
Conheci dois cidadãos da RDA
Um deles conta O meu filho que tem três semanas
Nasceu com um cartaz ao pescoço
ESTIVE NO OCIDENTE NO DIA NOVE DE NOVEMBRO
A minha filha da mesma idade Eu tenho gémeos
Traz no peito EU TAMBÉM
THE HORROR THE HORROR THE HORROR





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´água
1997



02 junho 2012

manuel antónio pina / aos filhos


  


Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôramos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa?

1976/1989





manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012

31 maio 2012

jovan hristic / na grande biblioteca





Na grande biblioteca os sábios sentam-se e lêem livros.
Eu sento-me no meio deles, mas não sei porquê.

De tempos a tempos um deles passa pelas brasas
E depois levanta-se para ir beber um café.

Eu deixo-me estar visto que sou o único entre eles que não sabe
Por que lê os livros empilhados à sua frente na secretária.

Lá fora o sol brilha, os esquilos saltitam no relvado
E trepam pelas árvores. Eu sento-me e leio.

Todos temos que fazer alguma coisa. As pessoas passam na rua.
Têm coisas para fazer. Eu leio e leio
visto que não tenho mais nada para fazer, e o tempo passa devagar.



jovan hristic
versão de luís filipe parrado


30 maio 2012

manuel de freitas / pressa de viver

                  


                      [para o Zé, que nunca lerá este poema]



Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
─ e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
─  «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
─  quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
─  e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.





manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002