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20 janeiro 2017

thom gunn / a visão da morte de um motociclista perturbado



Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
Dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
 – Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte e a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

Embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos lívidos com lívidos nós
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.


thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



21 fevereiro 2016

thom gunn / fragmento nocturno



O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.



thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



23 abril 2014

thom gunn / o mensageiro



Transforma-se este homem num anjo quando fixa
Uma flor vermelha cujo nome ele desconhece.
        A face de veludo, os cabelos de pontas negras?

Os seus olhos dilataram-se como os de um gato à noite.
Os seus lábios entreabrem-se mas não fala
        Daquilo que vê e que assim o completa.

O seu corpo prepara-se para imitar a flor,
Ajoelhando-se e enterrando os dedos dos pés no solo,
        A origem crua, granulosa e acre.

A sua quietude responde como um espelho,
O da flor; ela é a serenidade da chama em botão
        Que abriga dentro de si a plenitude da erva.

Mais tarde as notícias, para se ramificarem de sentido em sentido,
Trazendo as suas versões da flor numa pequena
        Aparência exterior até à sua compreensão.

Entretanto, silencioso e expandindo-se como uma chama,
Ele inclina-se contemplando apenas o exterior:
        Caule firme e rosto sem nome.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



07 novembro 2013

thom gunn / o concerto ao ar livre



Na orla
da compreensão
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa intercepção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



10 outubro 2013

thom gunn / peça nocturna



O nevoeiro vagueia lentamente pelo monte abaixo
E à medida que subo torna-se ainda mais denso,
Encerra-me dentro de si, faz-me seu
Como roupa de cama na pedra da calçada.

Aqui se situam as últimas poucas ruas que falta escalar,
Galerias, atravessam veias de tempo,
Quase familiares, onde rastejo
Para o sono como nevoeiro, através do nevoeiro como sono.



thom gunn
tradução de cecília rego pinheiro





06 julho 2012

thom gunn / blackie, o rembrandt eléctrico


  


Espreitamos pela frente da loja enquanto
Blackie desenha estrelas uma igual

concentração nesses rostos,
o seu e o do jovem. A mão

é firme e certa;
mas o rapaz não a vê

pois os seus olhos seguem o ponto
que toca (movimento rápido e escuro!)

um braço ainda puro abaixo
da sua manga arregaçada: sustém a respiração.

… Agora que está terminado, ele
paga com algumas notas a Blackie

e sai com uma ligadura no
braço, sob a qual cintilam dez

estrelas, pendendo de um cacho espesso
e azul. Agora ele é como as estrelas.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


06 junho 2012

thom gunn / a destruição do nada


  


Nada é o que permaneceu: nada, o arrojado epíteto
Que pronunciei pela noite tantas vezes até ser transportado
Para um escuro sono, ou o sono que continha um sonho.

Nisto havia uma enorme ausência contagiosa,
Mais espaço do que espaço, sobre a nuvem e o lodo,
Definidos apenas pela sua excessiva oscilação.

Despojado até à indiferença nas curvas do tempo,
Cujo fim eu conhecia, acordei sem um desejo,
E saudei o zero como um paradigma.

Mas agora despedaça-se: as imagens surgem incendiadas
Na calma esfera onde tenho vivido,
Regulando a paisagem ainda intacta:

O poder que imaginava, que presidia
Supremo a devastações abstractas,
É apenas uma mudança; os átomos que o dividiam

Completam, sem o saber, novas combinações.
Apenas descubro uma infinita finitude
Naquelas variações belas e estranhas.

É o desespero de que o nada possa existir
A cintilar no espírito e a deixar uma marca fumegante
De temor.
               Olhem para cima. Nem presa nem liberta.

Uma questão inútil paira nas trevas.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


19 agosto 2007

talbot road

onde vivi em Londres 1964-5






1

Entre as boutiques creme
de Notting Hill e as menos definidas
mas inóspitas paragens de Harrow Road,
toda ela tijolo enegrecido, ficava a rua
construída para burgueses, uma outra Belgravia,
que acabara por ficar
para operários («Negros ou Irlandeses
Não se Precisam») para depois como as veias
de um inglês de gema
se encher de uma mistura promíscua:
polaco, italiano, irlandês, jamaicano,
fluxo rico e revolto. Um restaurante jugoslavo
encaixilhou fotografias de príncipes exilados,
mas as crianças eram gralhas com sotaque de Londres.
Vivi em Talbot Road
durante um ano. O excelente quarto
onde dormi, comi, li e escrevi
tinha um tecto alto, a toda a volta
rosas de estuque tinham sido pintadas de azul.
Podia passar-se pela janela
para uma varanda maciça e até
(se o cano não estivesse entupido)
lá jantar em noites quentes.
A isto chamo pleno acesso –
ao ar, à rua, à amizade:
pois dali podia ver, ao fundo de algumas ruas,
a janela onde o Tony, o meu velho amigo,
trabalhava em traduções. Também eu tentava
verter passos obscuros em inglês claro,
como faço agora.



2

Amigo sedutor e difícil,
conselheiro e aliado. Como estudantes
absortos no nosso próprio romantismo,
poeta inocente e actor posáramos
representáramos os nossos papéis um ao outro
tem-me por vezes parecido
como garanhões em casa de passe.
Ele via-se, todavia, às voltas
com a figura mais bonita do seu curso.
Se «os ricos são diferentes de nós»,
também os bonitos o são. O que
é que ele na verdade queria? Ah, a tal pergunta...

Duas ligações a correr em Londres,
uma em Northampton, uma na Irlanda,
provavelmente outras. Amigos e amantes
todos tinham as suas versões privadas dele.
Duque fantástico de lugares escuros,
nunca precisava de mentir:
tínhamos aprendido a não fazer perguntas.

O fogo de alguém tão bonito.
Mas quase escondido pelo aro do fogo,
por trás da máscula doação de si,
no centro da exuberância, havia
algo retido, lento, algo -
o quê? o quê? Um brasido húmido de insatisfação.
Especulava então sobre as «relações humanas»
que deveríamos entender
— vide Forster, passim, etc. –
como um fim, um bem em si mesmas.
Ele não as via desse modo.

Finalmente deu nisto,
as poses desfizeram-se a este ponto:
gostava mais de nós pelas nossas faltas
do que por aquilo que pudéssemos dar-lhe.
Quando uma vez num pub perdi a cabeça,
voltei abrindo caminho a ombro do urinol
e disse ríspido: «Estava zangado demais para mijar.»
No dia seguinte exclamou encantado,
«Sabes que foi a primeira vez
que te zangaste comigo?»
Como algumas pessoas esperam por um sinal de amor,
ele esperara não sei quantos anos
por um sinal de cólera,
por um sinal de alguma coisa que não o amor.



3

Uma Londres a que se volta doze anos depois.
Numa longa passagem entre duas ruas
vi por ali andando quem fui outrora
ou assim parecia
um jovem à volta dos dezanove fitando-me
de uma curva do desejo. Manteve o olhar
como se o abrigasse do vento.
Os nossos olhares falaram-se, depois tocámo-nos
na conversa dos corpos.
Juntos em pé no asfalto às claras,
gradualmente nos abandonámos a um riso partilhado.
Era este o ano, o ano da reconciliação
com o que quer que fosse que tinha deixado,
o calor acídico das emoções adolescentes,
o emudecimento prematuro e o desprezo de si.
No meu riso, na minha sorte,
perdoei-me a mim mesmo ter tido uma adolescência.

Comecei a acumular perdões
até em antecipação. Em Hampstead Heath
conhecia desde criança cada caminho súbito,
os nós de cada árvore a que podia subir-se.
E agora acometi-os à noite
e, onde jogara às escondidas
com crianças da zona, joguei como um adulto
com rondas de homens cujos turnos se cruzavam
na Árvore da Orgia ou no bosque
de troncos de vidoeiro fulgindo como sentinelas mudas
ou em tendas de ramo e arbusto
cercados pelo cheiro familiar
de folha tenra salgada, explosiva.
Numa floresta de Arden, num sonho de uma noite de verão
perdoei a toda a gente a sua juventude.



4

Mas voltei, depois do último autocarro,
de Hampstead, Wimbledon, dos pubs,
dos viadutos de comboios do East End,
voltei a Talbot Road,
ao tijolo, ao cimento das frentes arturianas,
às grades da zona perto de alçapões de carvão,
às espessas colunas dos vestíbulos.
A minha varanda enchia-se de neve húmida.
Quando secava, o Tony e eu
almoçávamos aí ao sol
empada de vitela e presunto, cerveja e salada.
Falava-lhe das minhas aventuras.
Ele perguntava-se em voz alta se seria mais feliz
se fosse bicha como eu.
Como poderia ele querer, perguntava-me eu,
ser outro que não ele?
Então tinha de ir-se embora,
ir-se na vivacidade do seu andar
para onde, nunca perguntei ou adivinhei.

No final do meu ano, antes de partir,
ele deu uma grande festa para mim
num barco dos canais. A festa deslizou
pela malha aquosa de Londres,
rede que sempre apercebêramos
a um canto do olho
por trás de grades ou do cimo dos autocarros.
Agora cá estávamos, levados nela,
num piquenique, olhando entre garfadas
para traseiras de prédios, para paredes negras de fumo
cor de coral à luz do longo crepúsculo,
para o que sempre suspeitáramos
quando cruzávamos as pontes sob que passávamos agora,
deslizando entre o segredo aberto.



5

Isto foi há quinze anos.
O Tony morreu, o bairro em que vivi
foi deitado abaixo. A mente
é um lugar impermanente, será,
mas aspira à permanência.
A rua abriu e abriu-se
à total ausência de carácter. Ontem à noite
sonhei com ela como poderia ter sido,
o passeio junto ao gradeamento da igreja
estava molhado com chuva primaveril,
era noite, a luz dos candeeiros
esboçava-a numa gravura perfeita.
Postal sentimental de um sonho,
de um momento entre tumultos raciais!

Mas lembro-me, nítida, da minha última semana,
quando todos os detalhes se iluminaram de sentido.
Um rapaz estava a ficar pareceu-me,
com a sua avó na casa em frente.
Era um rapaz novo, talvez do campo.
Todas as noites dessa semana
se sentou com a sua camisa branca à janela
— um arco gótico de proporções diminutas —
apoiado nos braços, olhando para baixo
como se atentamente decifrasse caracteres
de uma língua viva que ainda estava a aprender,
nem um sorriso fazendo estalar as suas faces róseas.
Olhando em baixo
o tráfego humano, de todas as nações,
os justos e os injustos, quem
eram eles, para onde iam,
aquele belo derrame público à margem do qual
ele esperava, composto, maravilhando-se remoto
e sem pressa
antes de estar pronto um dia
para descer àquela corrente viva.








thom gunn
as escadas não têm degraus 3
tradução de antónio m. feijó
livros cotovia
março 1990