17 fevereiro 2011

mark strand / elegia 1969


segundo carlos drummond de andrade




Arrastas a escravidão até à velhice
e nada que faças te vale de muito.
Dia após dia passas pelos mesmos gestos,
tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.

Heróis representando vidas de sacrifício e obediência
enchem os parques por onde caminhas.
À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze
ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.

Amas a noite pelo seu poder de destruição,
mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.
Acordar só prova a existência da Grande Máquina
e a luz árdua cai nos teus ombros.

Caminhas entre os mortos e falas
de tempos por vir a assuntos do espírito.
A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.
Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.

De pronto confessas o teu fracasso e adias
a alegria colectiva para o próximo século. Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a distribuição injusta da riqueza
porque não podes, sozinho, rebentar a ilha de Manhattan.







mark strand
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé alberto oliveira
porto 2001 / assírio & alvim
2001







15 fevereiro 2011

antónio ladeira / as pessoas instantâneas






Quando a morte cai sobre as pessoas
é porque tem as asas cansadas
de dar voltas ao mundo.

Escolhe, hesitante, um dos seus cantores.
Escolhe quem, matinalmente, se cumprimenta.

A morte um dia esquece e desce
sobre os mesmos reverentes.

Esqueceu tudo o que dissera.
Ou fingiu que esqueceu tudo.

Alguém parou misteriosamente de falar.

E o silêncio quer dizer: “Acabou tudo.”
Quer dizer: “venham comigo até aquelas grutas!”

Agora finjam que estão velhos.
E que ninguém está nada triste.

Olhem para as vossas pernas,
não há pernas!

Nem mãos,
excepto para tocar em coisas indescritíveis.

As crianças que morriam.

Vou viver para a neve com os meus filhos
mergulhar nos rios soturnos e profundos
em segundos.

Por entre as algas e os peixes que prendiam
os braços das crianças que agarravam
os polvos misteriosos que ensinavam
a nadar os que mereciam.
Se a mim viesse algum dos mortos que ensinasse
a morrer a quem vivesse
a nadar a quem andasse
a dormir a quem falasse

Sem parar.

Imitaria a vida que vivesse
esse monstro que ensinasse

Que morresse.

Que matasse.

Sem matar.









antónio ladeira
a minha cor favorita é a neve
escritor
2000






12 fevereiro 2011

gil t. sousa / os que se perderam





31


que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que o silêncio se curve
como um animal sem voz






gil t. sousa
falso lugar
2004




10 fevereiro 2011

edmundo de bettencourt / poema de amor





A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!

O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…






edmundo de bettencourt
poemas
arcádia
1963








08 fevereiro 2011

nizzar qabbani / o poema




o poema
uma lição de desenho



O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

"Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!"

E eu digo-lhe:

"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.







Nizzar Qabbani

Escritor sírio, considerado um dos maiores poetas árabes. Do amor e da política.
Morreu em Londres onde vivia, aos 75 anos, em Maio de 1998.
Notabilizou-se com obras eróticas que quebraram tradições literárias no Médio Oriente,
pela defesa da emancipação das mulheres.
As suas palavras ficaram imortalizadas nas canções da egípcia Umm Kulthoum
e da libanesa Fairouz. Nacionalista convicto,
foi extremamente crítico dos líderes árabes, sobretudo após as guerras
contra Israel de 1948 e 1967, que contribuíram para o êxodo palestiniano.

(in Público, 8 de Abril de 2002)


05 fevereiro 2011

kiki dimoulá / a juventude do esquecimento








Espero um pouco
que escureçam as diferenças e as indiferenças
e abro as janelas. Não há pressa
mas faço-o para que não se me empenem os movimentos.
Peço emprestada a cabeça da minha anterior curiosidade
e rodo-a. Rodar, não é bem.
Dou as boas-tardes servilmente a todas as bajuladoras
dos medos, as estrelas. Boas-tardes, não é bem.
Reforço com o fio do olhar os fios
dos prateados botõezinhos da distância
alguns que se desfiaram estão tem-te não caias.
Não há pressa. Faço-o apenas para mostrar à distância
quanto lhe agradeço a oferta.

Se não houvesse a distância
murchariam as longas viagens
viriam de motorizada trazer-nos a casa
como pizzas o mundo que a nossa partida desejava.
A velhice seria uma sanguessuga
colada à juventude
e chamar-me-iam vovó desde os meus verdes anos
netos e amores indiferentemente.
E que seriam os astros
sem o apoio que lhes dá a distância?
Pratarias terrestres, alguns candelabros, cinzeiros
para que neles deite a cinza o rico belicoso
para que a admiração invista a sua sobrevalorização.

Se não houvesse a distância
a saudade tratar-nos-ia por tu.
E os pudores dos agora tão raros encontros
com a plural necessidade nossa
fatalmente se afeiçoariam
à linguagem grosseira do hábito.

É claro, se não houvesse a distância
o nosso próximo não seria essa estrela longínqua
viria à primeira aproximação
só dois passos separariam os sonhos
da sua silhueta.
Assim como junto a nós ficaria
a derradeira partida da alma.
Para onde tanto deambular? Há
um espaço vazio. Nós desceríamos
para vivermos no nosso corpo subterrâneo
e ela com a sua fábula e os seus pertences
reencarnaria em corpo.

Se não existisses ó distância
o esquecimento passaria mais facilmente
mais depressa numa só noite
a difícil prolongada juventude sua
aquilo que por melhor soar chamamos recordação.

Recordação não é bem. Reforço
Com o fio do olhar semelhanças
Que se desfiaram e estão tem-te não caias.
Reforço, não é bem. Servilmente volto-me
desviando-me desses bajuladores do tempo que
por brevidade chamei recordação.
Recordação, não é bem. Reabasteço estrelas cadentes
com prolongada aniquilação. Há pressa.









kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





03 fevereiro 2011

carlos de oliveira / infância






Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.






carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




01 fevereiro 2011

eugénio de andrade / três ou quatro sílabas





Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.





eugénio de andrade
véspera de água
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






30 janeiro 2011

luís filipe parrado / abominação






Por um momento parece-te possível
um sentido para a vida. Acordas um filho,
desces as escadas, percorres as ruas encerradas
ao trânsito da memória, as máquinas
em movimento trabalham com escasso esplendor.
E reparas que corpo e pele coincidem,
que as vértebras dos cavalos sustentam
o ar, que no copo ficou uma borra do vinho
que te trouxeram amigos que já não estão contigo.
Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação
do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,
a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco
e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril
dos teus olhos negros que não compreenderão
jamais como, alguma vez, pudeste escrever
a palavra vida a seguir à palavra sentido.





luís filipe parrado
criatura
nr. 5 outubro
2010





27 janeiro 2011

josé de almada negreiros / mãe!






Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!






josé de almada negreiros
a invenção do dia claro





26 janeiro 2011

antonio sáez delgado / aviso


Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.






antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes







25 janeiro 2011

violeta c. rangel / porque é tão alto o preço da vida?





O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud…

Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada
porque é tão alto o preço da vida?






violeta c. rangel
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes





22 janeiro 2011

gil t. sousa / um labirinto de vidro






30


um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos

no chão
sombras brancas sem raiz




gil t. sousa
falso lugar
2004