04 agosto 2010

tim webb e sarah brewer / sexo





Só para ter uma ideia geral do que é o sexo no nosso planeta (e para impressionar os seus amigos nas festas) pense apenas que, a cada segundo que passa, ocorrem em todo o mundo 19 000 orgasmos masculinos. Por outras palavras, é bastante provável que, no mundo inteiro, 6 milhões de seres humanos estejam constantemente ocupados com a apreciação sexual do corpo de outra pessoa. E isto sem contarmos com aqueles que estão a apreciar activamente o próprio corpo.

Se compararmos o número referido com a taxa de natalidade internacional de 4,5 NPS (nados por segundo), a hipótese de os humanos copularem apenas com fins reprodutivos torna-se completamente ridícula. E óbvio que o rácio entre o produto resultante e a unidade de energia gasta não impressionará os economistas, já que, provavelmente, a maior parte deles terá abandonado estes prazeres mundanos há muito tempo.

O sexo apresenta inúmeras vantagens quando comparado com outros passatempos. É mais barato do que o golfe ou o ténis, porque a maior parte do equipamento é gratuito. Exige menos perícia do que, por exemplo, o snooker, apesar de não podermos negar que, em ambos, o desempenho pode ser aperfeiçoado com prática e trabalho árduo. Dá mais satisfação imediata do que coleccionar selos ou ouvir a Rádio Renascença e tem ainda a vantagem de não ser necessário reunir tantos jogadores como para um jogo de futebol.

Tudo isto se deve, provavelmente, ao facto de o sexo ser uma actividade bastante simples, aprazível e normalmente inofensiva, que entrou nos nossos hábitos ao longo dos séculos. Basta apenas consultarmos os documentos históricos mais básicos para chegarmos à conclusão de que todos os grandes líderes (especialmente aqueles que, durante os últimos anos, foram apontados como déspotas incompetentes e tirânicos) apresentaram propostas políticas que incluíam menos sexo para as massas. Na realidade, para se descobrir um ditador dos tempos modernos, o melhor a fazer é saber quais os seus pontos de vista sobre sexo ilícito.

Antigamente a situação era bastante simples. O sexo era uma actividade tão normal como comer, beber ou respirar. O facto de todas as pessoas o fazerem era reconfortante, e não ameaçador, pelo que a discussão pública estava limitada às casernas, aos bares e a outros locais de limitada actividade sexual, onde era fácil contar histórias fantásticas sem precisar de provar nada.

No entanto, a invenção da penicilina, da contracepção eficaz, da Cosmopolitan e do Ford Escort XR 3i alterou esta situação para sempre.

A compreensão das convenções sexuais (e de inspiradas novas maneiras de fazer sexo) tomou-se aceitável e, mais do que isso, um requisito obrigatório para a admissão em determinados círculos sociais.





tim webb & sarah brewer
o especialista instantâneo em sexo
trad. de paulo david silva
gradiva
1996




02 agosto 2010

saint-john perse / estreitos são os navios






fragmentos


I

…Estreitos são os navios, como estreito o nosso tálamo.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nas câmaras cerradas do desejo.

Entra o Verão, que vem do mar. Somente ao mar diremos
Os estrangeiros que fomos nas festas da Cidade, e qual o astro subindo das festas submarinas
Que veio uma noite, sobre o nosso tálamo, farejar o leito do divino.

Em vão a terra próxima nos vai traçando a sua fronteira. Uma única vaga através do mundo, uma única vaga desde Tróia
Até nós vem rolando a sua anca. No muito grande largo, ao largo, longe de nós, outrora este sopro se imprimiu...
E uma noite nas câmaras foi imenso o rumor: a própria morte, nem ao som de búzios, de modo algum aí se faria ouvir!

Amai os navios, ó pares apaixonados; e o mar alto no interior dos quartos!
Uma tarde a terra chora os seus deuses, e o homem dá caça às feras ruivas; as cidades usam-se, as mulheres sonham... Que exista sempre à nossa porta
Esta alvorada imensa chamada mar — escol de largas asas e levantamento armado, amor e mar do mesmo leito, amor e mar no mesmo leito —

e de novo este diálogo dentro dos quartos:






saint-john perse
estreitos são os navios (fragmentos)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






01 agosto 2010

fernando luís / num café de bolonha







4

De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.

Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.

Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.

É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.









fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






30 julho 2010

miguel esteves cardoso / rara







Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





28 julho 2010

wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo








A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.








wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III

traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






27 julho 2010

josé miguel silva /ao amanhecer







As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.






josé miguel silva
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes








26 julho 2010

paulo barbosa / desemprego







Tal como Rimbaud, as vozes instrutivas exiladas, a abominação a todos os
modos de vida, a inabilidade na luta
Tal como La Boétie, perfilho o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
Tal como o meu irmão, degrado-me na usura e sou dispensável
Tal como Belmiro, queixo-me da conjuntura e sou perverso
Agora acordo preguiçoso, sem hora nem ponto, conhecendo as mutilações
que nos aguardam, implacáveis
Tal como Ginsberg, fico sentado dias a fio a olhar as rosas na retrete
Colecciono más caras e escrevo frase sobre frase pelo cano abaixo






paulo barbosa
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002





21 julho 2010

manuel alegre / coração polar






1

Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.


2

Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro
é ele que vem talvez na nuvem perigosa
esse veleiro desaparecido que somos todos nós.
Da minha janela vejo-o passar no vento sul
outras vezes sentado olhando o ângulo mágico
sinto a sua presença logarítmica
vem num alexandrino de Cesário Verde
traz a ferragem e a maresia
traz o teu corpo irrepetível
o teu ventre subitamente perpendicular
à recta do horizonte e dos presságios
ou simplesmente a outra margem
o enigma cintilante a florir no cedro em frente
qual é esse país pergunto eu
qual é esse país onde tudo existe e não existe
qual é esse país de onde chega este perfume
este sabor a alga e despedida
esta lágrima só de o pensar e de o sentir.
Não é apenas um lugar físico algures no mapa
é talvez o adjectivo ocidental
o verbo ocidentir
o advérbio ocidentalmente
quem sabe se o substantivo ocidentimento.
Está na palma da mão no nervo no destino
e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste
é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país
que existe e não
existe.

Eu não sei de que cor são os navios
sei que por vezes
no mais recôndito recanto
no simples agitar de uma cortina
numa corrente de ar
num ritmo
há um brilho súbito de estrela e bússola
uma agulha magnética no pulso
um mar por dentro um mar de dentro um mar
no pensamento.

Há um eu errante e mareante
não mais que um signo
um batimento
um coração polar
algo que tem a cor do gelo e do antárctico
e sabe a sul a medo a tentação
uma irremediável navegação interior
um navio fantasma amor fantástico







manuel alegre
senhora das tempestades
dom quixote
1998




19 julho 2010

adonis / um espelho para o século xx






Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor

Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:

É isto
É isto o Século Vinte






adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001




15 julho 2010

e. e. cummings / pode nem sempre ser assim




[ i ]




pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;


se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.







e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998






14 julho 2010

amalia bautista / xerazade







Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.






amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004







12 julho 2010

gil t. sousa / do teu nome






21/




sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome

a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?







gil t. sousa
falso lugar
2004






10 julho 2010

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono








há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.





r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987