23 janeiro 2010

paulo jorge fidalgo / gostos








Gosto da chuva em dias cinzentos
das ruas transpiradas e das mulheres
abrigadas sob as pálpebras da noite.
Gosto de uvas e de tremoços
e dos trémulos moços que namoram.
miúdas constipadas - choro com eles
suas mágoas.
Gosto das luzes e das fachadas iluminadas
dos palácios com árvores e dos pássaros
nas árvores gosto da fidelidade dos cães
e do cheiro dos animais em casa
gosto do Inverno se estou triste e de ir
anoitecer ao cinema, bebo vinho e rio
sozinho no meu quarto enquanto espero
que tu venhas tardia e fria ao meu colo,
chamo-te nomes que amei e tu sabes
que eu amei e não te importas que te ame
assim tipo filme de renúncias e façanhas,
gosto de homens taciturnos e amigos
dos jornais de ontem e de um quadro
de Giotto numa história sem sentido,
leio prosa dispersa a preço razoável
e sou maldoso se vejo coisa doutro
que não preste, gosto de viagens curtas
e de mijar ao vento contra as giestas,
gosto de falar do passado e ser diferente
por dentro de mim que se não vê,
modesto não digo porque minto mas gosto
do azul limpo ou quase verde, uso tinta
durmo mal e pago imposto.
E prefiro um gosto ao resto.








paulo jorge fidalgo
hablar/falar de poesia nr. 4
2001








20 janeiro 2010

josé tolentino mendonça / side of the road







Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos






josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005







18 janeiro 2010

egito gonçalves / imagens de um inverno indocumentado












A vida tem lágrimas pesadas como árvores…
A sombra avança no atalho como um formigueiro.
Tuas pernas estão vermelhas de frio na paragem do eléctrico.

Felizmente existe a noite e a tua chegada.
O anjo estático não é mais que um boneco de pedra.
O calor da tua boca reinventa o estio.







egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


16 janeiro 2010

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano







6



quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.






antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999








14 janeiro 2010

daniel faria / ando um pouco acima do chão









Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe









daniel faria
poesia
explicação das árvores e de outros animais

quasi
2003





12 janeiro 2010

antónio gancho / música







A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada faria prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.







antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995





10 janeiro 2010

laurie anderson / lírio branco







Em que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braço
Entra numa florista e diz:
Qual é a flor que exprime
A passagem dos dias
Os dias que se sucedem sem fim
Puxando-nos
Para o futuro?
A infinita
Passagem dos dias
Puxando-nos infinitamente
Para o futuro.
E a florista diz:
O lírio branco.








laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997








06 janeiro 2010

maria do rosário pedreira / não voltei a esse corpo








Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.


Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.






maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro dos livros
gótica
2002



04 janeiro 2010

herberto helder / última ciência








Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.





herberto helder
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009








03 janeiro 2010

gil t. sousa / será esse o teu inverno






12/


nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.

e será esse o teu Inverno.








gil t. sousa
falso lugar
2004






02 janeiro 2010

sophia de mello breyner andresen / um pálido inverno







Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas






sophia de mello bryner andresen
dual
caminho
2004







30 dezembro 2009

wallace stevens / seis paisagens significativas








III


Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.






wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991







29 dezembro 2009

miguel esteves cardoso / tempo






Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.

Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.

Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.

Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»

Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.

Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.

A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».

Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.

Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».

Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».

O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.

Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.

As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.

«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».






miguel esteves cardoso
explicações de português
assírio & alvim
2001