02 janeiro 2010
sophia de mello breyner andresen / um pálido inverno
Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas
sophia de mello bryner andresen
dual
caminho
2004
30 dezembro 2009
wallace stevens / seis paisagens significativas
III
Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991
29 dezembro 2009
miguel esteves cardoso / tempo
Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.
Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.
Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.
Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»
Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.
Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.
A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».
Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.
Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».
Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».
O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.
Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.
As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.
«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».
miguel esteves cardoso
explicações de português
assírio & alvim
2001
26 dezembro 2009
heiner müller / anjo sem sorte 2
Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço
heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997
23 dezembro 2009
raul brandão / tudo o que me podes dizer
Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade – porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem na vibração, nem na ternura…
O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se voltaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte… está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer – já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim próprio me interrogo.
raul brandão
húmus
(novas máximas)
frenesi
2000
20 dezembro 2009
kenneth koch / a magia dos números
A MAGIA DOS NÚMEROS - 1
Que estranho era ouvir a mobília no andar de cima!
Vinte e seis anos eu, e tu vinte e dois.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 2
Perguntaste-me se queria correr; disse-te que não e fui andando.
Tinha eu dezanove e tu sete.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 3
Sim, mas gostará X realmente de nós?
Ambos tínhamos vinte e sete anos.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 4
Pareces-te com o Jerry Lewis ( 1950 )
A MAGIA DOS NÚMEROS - 5
O avô e a avó querem que vás jantar a casa deles.
Eles tinham sessenta e nove anos e eu dois e meio.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 6
Um dia, eu vinte e nove anos, encontrei-te e nada aconteceu.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 7
Não, é claro que não fui eu que fui à biblioteca!
Olhos castanhos, faces coradas, cabelo castanho. Eu tinha vinte e nove anos e tu
dezasseis.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 8
Uma noite em Rockport, depois de nos amarmos, saí e beijei a estrada,
Tão transportado me sentia. Tinha vinte e três e tu dezanove.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 9
Eu tinha vinte e nove e tu também. Foi um tempo muito apaixonado.
Tudo o que lia se convertia numa história sobre tu e eu, tudo o que fiz se converteu num poema.
kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992
16 dezembro 2009
luís miguel nava / paisagens
São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.
luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002
13 dezembro 2009
mário cesariny / barricada
Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982
pena capital
assírio & alvim
1982
10 dezembro 2009
gil t. sousa / na curva do rio
11/
na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.
ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
08 dezembro 2009
alejandra pizarnik / um sonho onde o silêncio é de ouro
O cão do inverno ferra o meu sorriso. Foi na ponte.
Eu estava nua e levava um chapéu com flores e
arrastava o meu cadáver também nu e com um
chapéu de folhas secas.
Tive muitos amores – disse – mas o mais formoso foi
o meu amor pelos espelhos.
alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002
06 dezembro 2009
albano martins / não são apenas os relógios
Também se pode
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
04 dezembro 2009
jorge gomes miranda / o que nos protege
Às vezes tenho medo de esquecer tudo:
a casa onde nasci, o recreio
da escola, essas vozes
que lembram um copo de água
no verão.
jorge gomes miranda
o que nos protege
pedra formosa
1995
02 dezembro 2009
josé miguel silva / já os pesadelos
What a perfect day to think about myself.
The The
Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.
O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.
Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.
Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003
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