31 maio 2009
gastão cruz / final
As palavras despedem-se dos dias
em que falar é o melhor serviço
Caem mortas e vivas da linguagem
vitimada
Mas quando regressarem
a sua fúria grande prenderá
nos humanos céus húmidos a arte
esquecida e excessiva da poesia.
gastão cruz
poemas reunidos
dom quixote
1999
25 maio 2009
pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão
O modo exemplar
da lapidação – irrepreensível
a executar
a infligir por cima
e por baixo as alvenarias
e a conformidade do sangue.
exímio e constante
nos pormenores do fogo
anterior aos incidentes
da predição e às funções
do alabastro.
pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008
22 maio 2009
josé alberto oliveira / elogio da solidão
Uma casa para estrear e descobrir
em quantas salas se acomoda a solidão.
Cozinhou o jantar e come atentamente
como todos quantos dividem a comida em silêncio:
o náufrago, o mendigo, o oleiro na lancheira.
Coze o seu barro, um jeito de partir o pão
que deve ao tempo uma lentidão coalhada.
O ruído do vizinho não o incomoda.
Nenhuma fala ou resíduo humano leveda
uma página ao acaso. Pode decidir beber mais vinho
ou inaugurar a leitura de outro livro.
Mesmo sair para beber café e mastigar o frio.
No pasto, a chuva rega a placidez do boi;
abana a cabeça, fumegam as narinas,
desenha-se num fundo de pinhal que o vento
castiga; na caruma molhada pressente-se
o rumor de um cão absorto na ilusão
do que procura. Coisas mínimas, irrisórias,
vão salvar o resto da noite de presumir felicidade.
Lá fora a cidade está cercada na convicção
das suas vidas perdoáveis, mercando
um alimento longamente dispensável
- a respiração em vitualhas e sarcasmos,
a pobreza irresignável e irresolúvel,
o cansaço de não estar só e não querer estar.
josé alberto de oliveira
por alguns dias
assírio & alvim
1992
19 maio 2009
andre breton e paul éluard / tentativa de simulação do delírio de interpretação
Quando se acabou este amor, encontrava-me como a ave no ramo. Já não servia para nada. No entanto observava que as manchas de petróleo na água me devolviam a minha imagem e apercebi-me de que a Pont-au-Change, junto da qual se encontra o mercado das aves, se curvava cada vez mais.
Foi assim que um belo dia passei para sempre para o outro lado do arco-íris à força de ver as aves furta-cores. Agora nada mais tenho a fazer na terra. Assim como as outras aves digo que já não tenho que cumprir na terra, de dar testemunho de presença alada sobre a terra. Recuso-me a repetir convosco a canção primaveril: «Morremos pelos passari-i-nhos, façam bem aos passari-i-inhos!»
A variedade de cores da chuvada fala papagaio. Choca o vento que sai do ovo com grãos nos olhos. A dupla pálpebra do Sol levanta-se e baixa-se sobre a vida. As patas das aves sobre o vidro do céu são o que eu recentemente chamava as estrelas. A própria Terra de que tão mal se explica a marcha, enquanto se vive sob a abóbada, a terra espalmada pelos seus desertos está submetida às leis da migração.
O verão de pena não acabou. Abriram-se os alçapões e ali se enfiaram searas de penugem. O tempo tem a sua muda.
O galo do campanário adorna o fumo dos tiros enquanto a viúva de peito alaranjado volta ao cemitério cujas cruzes são o ponteado minúsculo dos diamantes do Senegal e que o homem continua a imaginar-se na terra como o melro no dorso do búfalo, sobre o mar como a gaivota na crista das vagas, o melro sólido e a gaivota líquida.
Horo, de dedo na boca, é a avalanche. Eu não tinha visto estes passarinheiros que procuram homens no céu e se apanham no ninho com as pedras que atiram para o ar.
As fénix vêm trazer-me o meu alimento de vermes brilhantes e as suas asas que incessantemente se reanimam no ouro da terra são o mar e o céu que só se vêem esbraseados nos dias de tempestade, e que escondam as suas cristas de raios nas penas no momento em que adormecem sobre o único pé do ar.
Os moinhos dos relâmpagos quebraram-lhes a concha e escapam em voo rápido, a aragem come as dunas, o horizonte tenta evitar as nuvens.
Reconhecereis que os vossos leitos-gaiolas, e as vossas grades torcidas, e os vossos sobrados picados, e os vossos e as vossas moscadas e os vossos espantalhos à última moda, e os vossos fios telegráficos, e as vossas viagens em compartimentos de pombo, e o soco de cordeiros das vossas estátuas de rapina, e as vossas corridas de sebes feitas ao crepúsculo de pintarroxos que levantam voo, e as horas, e os minutos, e os segundos nas vossas cabeças de pica-paus, e as vossas gloriosas conquistas, contudo, as vossas gloriosas conquistas de cucos! Todas armadilhas de graça nunca ali estiveram senão para me fazerem passar as barreiras do perigo, as barreiras que separam o medo da coragem. Não contem mais comigo para vos fazer esquecer que os vossos fantasmas têm a forma das aves-do-paraíso.
No começo era o canto. Toda a gente às janelas! De uma margem à outra já não se vê senão Leda. As minhas asas redemoinhantes são as portas pelas quais ela entra no pescoço do cisne, na grande praça deserta que é o coração da ave da noite.
andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972
07 maio 2009
feliu formosa / baterás duas vezes
Baterás duas vezes e eu abrirei
e não quererei acreditar que sejas tu.
Entrarás num andar que desconheces
e que é feito apenas para sobreviver.
E aí me encontrarás, quem sabe
porque estranho desígnio. Entrando
na sala de jantar poderás ver o teu retrato
e os nossos livros. Soará o Nocturno.
Folhearás, quem sabe, Virginia Woolf.
Virei atrás de ti com o desejo
de sentir no meu rosto os teus cabelos.
Sentar-te-ei com infinita ternura
num dos velhos sofás compartilhados
(onde estudavas nos últimos tempos
um longo monólogo de mulher
solitária — o que nunca foste). Espiarei
os teus olhos, o triste sorriso
dos teus lábios amáveis, entreabertos,
e tudo acabará com um abraço
que será o primeiro. Deixará de haver
passado ou futuro. Tudo será lógico.
E este poema nunca terá existido.
feliu formosa
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994
03 maio 2009
josé miguel silva / os melhores anos da minha vida
Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.
Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.
Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003.
28 abril 2009
ingeborg bachmann / uma espécie de perda
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992
24 abril 2009
celso emílio ferreiro / o profeta
pouco antes de morrer
disse ele ao povo:
deus te dê ira,
que paciência tens de mais.
celso emilio ferreiro
galiza, 1914-1979
22 abril 2009
gil t. sousa / a tempestade, giorgione
4/
não é o mesmo sem a sombra do teu ombro, nem o vaporetto lá fora me há-de transportar aos mesmos lugares. esperam-me luzes, silêncios e trovões. decifrei-o, enfim. nunca farás parte desse mistério nem da sua revelação.
não é o mesmo sem a sombra do teu ombro, nem o vaporetto lá fora me há-de transportar aos mesmos lugares. esperam-me luzes, silêncios e trovões. decifrei-o, enfim. nunca farás parte desse mistério nem da sua revelação.
gil t. sousa
falso lugar
2004
falso lugar
2004
20 abril 2009
samuel beckett / queria que o meu amor morresse
queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me
samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
18 abril 2009
sylvia plath / espelho
Sou prata e exacta. Não tenho ideias preconcebidas.
Tudo o que vejo aceito sem reservas
Tal como é, inturvado por aversão ou amor.
Não sou cruel, apenas verdadeira -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
A maior parte do tempo medito sobre a parede oposta.
É cor-de-rosa com manchas. Tenho-a olhado tanto
Que julgo ser parte do meu coração. Mas vacila.
Rostos e trevas separam-nos vezes sem conta.
Agora sou um lago. Uma mulher curva-se sobre mim,
Sondando o meu âmbito em busca do que ela é realmente.
Vira-se depois para as velas ou a lua, esses mentirosos.
Vejo-lhe as costas e reflicto-as fielmente.
Ela recompensa-me com lágrimas e um agitar de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
Todas as manhãs é o seu rosto que substitui as trevas.
Em mim ela afogou uma jovem e em mim uma velha
Ergue-se para ela dia após dia como um terrível peixe.
sylvia plath
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993
14 abril 2009
álvaro de campos / nunca conheci quem tivesse levado porrada
Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infama da vileza.
álvaro de campos
poemas
“sê plural como o universo…”
fernando pessoa , antologia
ambar
2008
10 abril 2009
robert musil /sistemas de ilusão
(…) Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. (…)
robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008
robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008
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