31 janeiro 2025

lawrence ferlinghetti / três donzelas foram de viagem

 
 
 
 
Três donzelas foram de viagem
Uma levava um pedaço de pão
                                      na mão
Uma disse
                Cortemo-lo e dividamo-lo
 
E chegaram a uma floresta vermelha
e no meio da floresta vermelha
                  encontraram uma igreja vermelha
e na igreja vermelha
                  havia um altar vermelho
e em cima do altar vermelho
                  estava uma faca vermelha
e agora chegamos à parábola
                                                     Elas
pegaram na faca vermelha e feriram
                                                      o pão
e onde o golpearam com a
                                       faca vermelha
                                       o pão era vermelho
 
 
 
lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972
 

30 janeiro 2025

saint-john perse / para festejar uma infância

 
 
 
I
 
    Palmeiras…!
    Então banhavam-te na água-de-folhas-verdes; e a água era também sol verde; e as criadas da tua mãe, grandes raparigas luzentes, moviam as pernas quentes perto de ti, que tremias…
    (Falo de uma alta condição, dantes, entre os vestidos, no reino de claridades revoluteantes.)

    Palmeiras! e a doçura
    de uma velhice de raízes…! A terra
  desejou então ser mais surda, e o céu mais profundo, onde árvores demasiado grandes, cansadas de um obscuro desígnio, urdiam um pacto inextricável…
   (Tive este sonho, dentro da estima: uma estadia segura entre os tecidos entusiastas.)
               
    E as altas
    raízes curvas celebravam
    o pôr-se a caminho das vias prodigiosas, a invenção das abóbadas e das naves,
   e aluz, então, em mais puras proezas fecunda, inaugurava o branco reino para onde levei, talvez, um corpo sem sombra…
  (Falo de uma alta condição, outrora, entre os homens e as suas filhas, que mastigavam certa folha.)

    Os homens tinham então
    uma boca mais grave, as mulheres tinham braços mais lentos;
   então, alimentando-se como nós de raízes, grandes animais taciturnos enobreciam-se;
    e mais longas sobre mais sombra se erguiam as pálpebras…
    (Tive este sonho, ele consumiu-nos sem relíquias.)
 
 
 
saint-john perse
para festejar uma infância
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 

29 janeiro 2025

roger wolfe / o tinteiro

 
 
 
Em toda a parte
há poemas.
Muitas vezes
os melhores
são os que deixas ficar
onde estão.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




28 janeiro 2025

rené char / que viva!

 
 
 
Esta terra não passa duma esperança do espírito, dum
                                                       contra-sepulcro.
Na minha terra, as ternas provas da primavera e os
                              pássaros mal enfarpelados são
preferidos às metas longínquas.
A verdade espera pela aurora junto a uma vela acesa.
A vidraça da janela é desleixada. Isso que importa a
                                                     quem é atento?
Na minha terra não se interroga um homem emocionado.
Não há sombra maligna sobre a barca que mete água.
Bom dia sem mais, é coisa desconhecida na minha terra.
Só se pede emprestado o que se pode devolver aumentado.
Há folhas, muitas folhas nas árvores da minha terra.
Os ramos são livres de não carregarem frutos.
Não se acredita na boa fé do vencedor.
Na minha terra agradece-se.
 
 
 
rené char
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




27 janeiro 2025

billy collins / budapeste

 
 
 
A minha caneta move-se pela página
como o focinho de um estranho animal
com a forma de um braço humano
enfiado na manga de uma camisola larga e verde.
 
Vejo-a farejando incessantemente o papel,
determinada como se pensasse apenas
em forragear as larvas e os insectos
que lhe permitirão viver mais um dia.
 
Apenas quer estar aqui amanhã,
enfiada, talvez, na manga de uma camisa de xadrez,
com o nariz encostado à página,
obrigando-se a escrever mais umas poucas linhas,
enquanto eu espreito pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade onde nunca estive.
 
 
 
billy collins
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001



26 janeiro 2025

charles bukowski / a cara de um candidato político num cartaz de rua

 
 
 
lá está ele:
poucas ressacas
poucas discussões com mulheres
poucos pneus furados
nunca pensou em suicídio
 
não mais de três dores de dentes
nunca falhou uma refeição
nunca esteve na cadeia
nunca se apaixonou
 
7 pares de sapatos
 
um filho na faculdade
 
um carro com um ano
 
apólices de seguros
 
uma relva muito verde
 
caixotes do lixo bem fechados
 
será eleito.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

25 janeiro 2025

bob dylan / agora acabou-se tudo, baby blue

 
 
 
Deves partir agora, leva o que precisas, o que pensas que há-de durar
Mas o que quer que desejes guardar, é melhor agarrá-lo depressa
Além está o teu órfão com a sua arma
Chorando como uma fogueira ao sol
Cuidado que os santos estão a passar
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
A estrada é para os jogadores, é melhor usares o teu bom senso
Leva tudo o que juntaste da coincidência
O pintor de mãos-vazias das tuas ruas
Está a desenhar padrões loucos nos teus lençóis
Também este céu se está a dobrar debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Todos os teus marinheiros enjoados, eles estão a remar para casa
Todos os teus exércitos de renas, estão todos a ir para casa
O apaixonado que acabou de sair pela tua porta
Tirou todos os seus cobertores do chão
Também o tapete se está a mover debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Deixa o trilho de pedras para trás, algo chama por ti
Esquece os mortos que abandonaste, eles não te seguirão
O vagabundo que bate levemente à tua porta
Está com as roupas que dantes usavas
Acende outro fósforo, vai e começa de novo
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
bringing it all back home
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008
 



24 janeiro 2025

roland barthes / o corpo do outro



 

 
CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
 
1.
O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, do outro, a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, do outro, a voz – a voz, sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
 
2.
Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses miúdos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). essa operação processa-se de um modo frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho insecto que subitamente deixo de recear. Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a fazer de um morto um fetiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai da sua inércia, se põe a fazer qualquer coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
 
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.)
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017
 



 

23 janeiro 2025

sylvia plath / os anos

 
 
 
Entram como animais vindos
Do espaço de azevinho onde os espinhos
Não são os pensamentos que eu ateio, como um praticante
     de Ioga
Mas apenas, o verde, pura escuridão
Nela gelam e são.
 
Ó meu Deus, não sou como tu
Na tua vaga obscuridade,
As estrelas coladas por todo o lado, estúpidos confeitos brilhantes.
A eternidade aborrece-me,
Eu nunca a quis.
 
Do que eu gosto
É do pistão em movimento –
A minha alma morre só de o ver.
E os cascos dos cavalos,
Esse desapiedado ruído de cascos no chão.
 
E tu, Estase maior –
O que há de importante nisso?
Será um tigre este ano, este rugido ao pé da porta?
É o de um Christus,
O terrível.
 
Freio de Deus nele
Morto por voar e acabar assim?
As bagas do sangue são elas mesmas, estão muito quietas.
 
Os cascos não o vão ter,
Na distância do azul, os pistões assobiam.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




22 janeiro 2025

ron padgett / voz



 

 

Sempre me ri
quando dizem acerca de um jovem escritor
que «procura a sua voz». Eu interpretei
literalmente: teria ele perdido a voz?
Tê-la-ia projectado e ela
Não voltou? Ou talvez
se referissem ao jornal
The Village Voice? Ele está a tentar
encontrar a sua Voz.
                             O que não tem
graça é que tantos jovens escritores
tenham considerado esta ideia
credível: eles partem em busca
da sua voz, como se
fosse uma coisa independente, um tesouro
difícil de encontrar mas que merece
o esforço. Nunca pensei
que tal coisa existisse. Até
recentemente. Agora sei que existe.
Espero nunca encontrar a minha.
Espero continuar a ser uma fraude o resto da vida.
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018
 



 

21 janeiro 2025

pat boran / madressilva

 
 
 
 
                                                    para Ron Houchin
 
 
Meteu-se pelas estradas secundárias e conduziu durante horas
até o céu ser a poça de estrelas que ele perdera
na infância e da qual nunca se incomodara a sentir falta
até então, a noite dos seus cinquenta anos,
pais e vizinhos mortos havia muito, a velha casa
arrasada por um bulldozer, o lago
cheio e coberto com asfalto, um sinal de paragem
onde uma vez estivera posto um espantalho, a estrada
a desaparecer ao longe e apenas as estrelas
ainda familiares, ainda de confiança, e aquele perfume no escuro
a que ele chamava, então e ainda, madressilva.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




20 janeiro 2025

rami saari / melhoras



 
Nos banhos públicos de Al-Shifah em Schem
massajou-me as costas o jovem Sahid,
e o seu peito alto ofegou de tal modo
que as comportas todas do céu se abriram:
os joelhos dobrados tremeram na pedra,
seu hálito fundiu-se com os vapores da sala.
Do seu ventre, alpendre cheio de trigo e palha,
escorreram chuvas tardias alagando o solo.
E depois, o sabão. E depois, a água.
E depois,, toalhas e chávenas fumegantes.
Com o passar do tempo as comportas do céu entraram
à socapa no espaço reduzido que há entre as palavras.
 
 
 
rami saari
tradução de joão paulo esteves da silva
nervo/23
colectivo de poesia
janeiro/abril 2025
 



 

19 janeiro 2025

paul celan / no vermelho tardio

 
 
 
No vermelho tardio dormem os nomes:
um
é despertado pela noite
e levado com bastões brancos
para a muralha sul do coração,
sob os pinheiros:
um, de origem humana,
vai até à cidade de barro
onde a chuva se acolhe amiga
de uma hora marítima.
 
No azul
pronuncia uma palavra-árvore promissora de sombra,
e o nome do teu amor
acrescenta-lhe as suas sílabas.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023




18 janeiro 2025

tomas tranströmer / lisboa

 
 
 
No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas
     subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.
 
“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
comum binóculo a olhar para o mar.
 
Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos
     muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012





17 janeiro 2025

raffaele carrieri / um só fruto

 
 
 
Com o vermelho dum só fruto
Poderia beber comer
E pintar uma bandeira.
Com os bagos duma romã
Poderia acender fogueiras
Na língua
Ou abrir uma ourivesaria.
Entro como um ladrão
Neste mundo
De esferas e anéis
E não sei sair.
 
 
raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992





 

16 janeiro 2025

maria sousa / o passado é cada instante

 



 
o  passado é cada instante
em que a casa te parece cheia
 
há uma porta que ninguém abre
uma máquina de inventar vozes
 
e tu vives na solidão até
as lágrimas te cortarem a voz
 
 
 
maria sousa
não abras a porta a estranhos
do lado esquerdo
2019




15 janeiro 2025

maria f. roldão / fragilidade

 
 
 
No cesto das conquistas
coloco ovos de luz e ébano.
As dores bem arrumadas ao centro
e à volta o cansaço, em calibre mais pequeno.
No cimo, ervas de respostas,
em jeito de resguardo,
evitando que o pulso dispare outra vez.
 
Disponho camadas de ócio:
ferro das manhãs quezilentas.
Um papel vegetal de prudência.
 
E na asa tantos destemperos
que a mão mal consegue unir-se,
tão febril e trémula. Cheia de pavor
d’estilhaçar a vida.
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021
 




14 janeiro 2025

maria gabriela llansol / LV. eu sei

 
 
 
Um piano pode crescer como uma criança? Pode, nos nossos ou-
vidos formados, ser esse instrumento de sussurro, como dom
_______ também o urso se tornou minúsculo e o elefante se reduziu
à visão que eu tinha do marfim.        Se o desconhecido que havia de
entrar fosse órfão,
eu considerá-lo-ia mais livre do que só,
ou só era apenas a imagem do liberto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006




13 janeiro 2025

gastão cruz / de cada vez

  
 
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas vida
 
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
 
 
 
gastão cruz
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 janeiro 2025

nina gorlanova / tercetos

 
 
 
As crianças não gastaram o seu dinheiro
Para os gelados
E deram-no ao pai para a cerveja.
 
A filha do meio
Desenvolveu o gosto pela leitura
Devido às minhas orações.
 
É só em sonhos que
Hoje em dia vejo
Pessoas que o conseguiram.
 
Tudo melhorou
Mesmo quando estávamos furiosos um com o outro
Nunca partimos um prato…
 
O meu filho mais novo
Lê como os Romanos antigos
Em voz alta e reclinado.
 
Ao ler a prosa de Brodsky
Descobri uma afinidade espiritual:
Uma intensa paixão pelo pó…
 
 
 
nina gorlanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 




11 janeiro 2025

fernando ortiz / outra divagação

 
 
 
Onde estão os que o silêncio oculta?
Pergunta ao silêncio, se for a tua hora,
e com seus lábios o silêncio te falará.
Ao silêncio não podes responder-lhe
se não for com o silêncio que tu sabes
onde encontrar. Aí o silêncio habita
e nele estão os que  ao silêncio ouviram.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





10 janeiro 2025

louise glück / lago na cratera

 
 
 
Houve uma guerra entre o bem e o mal.
Decidimos que o corpo era o bem.
 
Isso fez da morte o mal.
E virou a alma
inteiramente contra a morte.
 
Como um soldado raso desejoso
de servir um poderoso guerreiro, a alma
desejou aliar-se ao corpo.
 
Virou-se contra as trevas,
contra as formas de morte
que reconhecia.
 
De onde provém a voz
que diz: e se a guerra
for o mal? Que diz:
 
e se foi o corpo que nos fez isto,
nos deixou com medo do amor?
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




09 janeiro 2025

emanuel jorge botelho / claro/escuro

 
 
 
faço o quê com a amargura?
guardo-a no bolso,
ou ponho sobre ela o peso de um dia aziago?
talvez o mar me salve, ou me converta,
talvez a terra seja o meu arado.
 
quando o tempo passar à minha frente,
peço-lhe uma folha de tília,
e um pedaço de céu.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



08 janeiro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

 
 
 
XLI.
 
depois de um dia inteiro
a lutar individualmente pela sua sobrevivência
os pássaros reúnem-se para criarem
em conjunto
um momento de beleza.
 
é esse o sentido de comunidade –
 
de todas as teorias que conheço,
é esta a que prefiro.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024
 



07 janeiro 2025

pedro tamen / a água

 
 
1.
 
Agora muitos montes; e o rio
se levanta e corre nos intervalos
dos gestos. Saber sentir o frio
de todos os ribeiros é amá-los.
 
Agora é ir correndo os dedos
pela pele; abrir o peito
a todos os cuidados e segredos,
amar-me já refeito.
 
Agora perder tudo; ter aberta
a carne de aventura naufragada.
Agora receber e estar alerta,
 
agora ter razão na mão molhada.
Agora desnudar a lama certa
e esperar vê-la escorrida e bafejada.
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 


06 janeiro 2025

r. lino / outro círculo

 
 
 
1.
 
Certo é que outras palavras poderiam
transtornar estes dizeres
NAVIOS DE NEVOEIRO APONTADOS PARA O MAR
COM A TERRA NOS SEUS SONHOS.
Não se sabe para que olharam
ou do que viram o que contaram:
o esquecimento guiou alguns
para o futuro; de outros pouco mais sabemos
senão o peso que deixaram nas cidades,
apostas mais ou menos eficazes
e perversas sob o peso das nações.
Um fôlego enorme nasce com os dias
por notícias devastadas sobre a terra:
somos uns e somos outros
consoante as esquinas em que viramos.
De que modo nos apanha o corpo
o pensamento, este cheiro, aquela casa
uma tarde ou uma bala
é um tempo
marcado pelo ritmo de uma voz.
 
 
 
r. lino
paisagens de além tejo
políptico
companhia das ilhas
2016
 



05 janeiro 2025

jaime rocha / poema

 
 
 
Ao fundo, as nuvens chocam com as
casas. Os pássaros gritam e há homens
que se atiram das varandas como se
fossem vasos empurrados pelo vento.
Os carros esmagam os bichos que correm
pelo alcatrão. É quase Primavera, o frio
anuncia uma culpa antiga, a solidão
dos guerreiros. E há outro homem
que diz: gosto das árvores, do seu tronco
e das raízes que rasgam as calçadas. Esse
homem decidira viver porque pertencia
à humidade das paredes, aos telhados de
barro, às bétulas. Era dali que lhe vinha
a força dos braços, a claridade que se lhe
prendera à pele. Era esta a sua confissão.
Mas, após ter dito aquelas palavras lançou-se
para o espaço, seguindo a trajectória da chuva.
 
 
 
jaime rocha
resumo, a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
 




04 janeiro 2025

Ifigenia doumi / impermeável

 
 
 
Sou impermeável às tuas palavras
escorregam por cima de mim, ora querendo
magoar-me ora querendo incitar-me.
Sou impermeável às tuas carícias;
pingam por cima da minha pele
a temperatura neutra.
 
Perguntas-te porque é que o chão se encheu de água.
Não tenho nada a dizer.
Não tenho nada a dizer.
 
[O céu estrelado é como as costas de um homem cheias de sinais.
Tu desejando mergulhar na escuridão,
e eles cravando-se nos teus olhos].
 
 
 
ifigenia doumi
tradução de nikos pratsinis
nervo/18
colectivo de poesia
maio/agosto 2023




 

03 janeiro 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCXCII
 
Tudo já se cumpriu e tudo é novo.
Tudo está por fazer, pois nada existe,
ainda. Não há mais estradas que as que
os teus pés vão abrindo, e o vento apaga
logo, farejador, cão do teu rasto.
Pelos marcos solenes que te apontam
os caminhos de qualquer fé que seja,
suspendem-se, enforcados, verdadeiros
enganos. Onde, alegre, te acene
nada, mas nada, é esse o teu caminho!
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021




 

02 janeiro 2025

rui diniz / gente invulgar

 
 
Contemplei a galeria negra dos outonos etruscos.
Eram telas meditadas no exílio, na sofreguidão
azul das ilhas negras, pequenos vasos, fragmentos
de poemas onde os pórticos celebravam. Lentamente
os processos de impiedade foram florescendo na
grécia. E vi Aspásia exilada, corroída por um
choro ancestral, as suas vestes manchadas pelo
sangue escuro da desolação. Eram estes seres de
azuladas mãos, manejavam à estranha luz
tranquilos manuscritos, compunham a dolorosa
condenação dos mundos loucamente. Esculpiam
os talentosos mármores, planeavam nos
cérebros uma leve ascensão. O sorriso de Fídias
era finalmente coberto por folhas amarelecidas,
pelo orvalho, pelo vestido dos invernos, a neve
negra do interior do país, em montanhosas
maldições. Fídias olhava longamente a noite
como se ela fosse a ágora de Rodes. E, na
triste vastidão das águas pálidas, permanecia
deitado sobre a estrada, numa atitude escura.
Recordo-me que tomei o caminho das antigas
Arenas e sobre o pensamento desses lugares
tinham pousado uma doce e vingativa máscara
de tragédia. Então lembrei Sófocles escrevendo
lentamente, ouvindo a voz branca do demónio
que o habitara, longe, nesse tempo, instante
envelhecendo as colunas de um pó breve, a
decadência rubra dos recortes da costa, dos
litorais onde se decompunham sob o sol as tessálicas
palavras.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
ossuário (ou: a vida de james whistler)
língua morta
2022





01 janeiro 2025

luís miguel nava / a preto e branco

 
 
 
Uma mulher encosta-se a um muro, encosta-se à memória. Veste duma maneira simples, uma blusa, uma saia cobrindo os joelhos, talvez uns tamancos. Tem ainda, amarrado à cabeça, um lenço negro, negros aliás e brancos todos os tons em que se veste, negros os tamancos, um casaco de lã sobre a blusa, negras ainda algumas das riscas da saia, brancas as outras, como a blusa. Encosta-se ao muro aonde cola as costas, os ombros e depois uma das faces, assim é mais fácil ver-lhe o rosto. As mãos encostá-las-ia também se não segurasse um lenço branco. Aperta-o entre os dedos, fá-lo passar entre eles, uma pequena serpente. Ou então amarrota-o, faz das palmas das mãos uma concha onde o esconde, o lenço assim desaparece totalmente, apenas as mãos se vêem projectadas para a frente, dir-se-ia que rezam. Depois, sempre ocultando o lenço, levam-no ao rosto novamente de perfil, tudo a preto e branco ainda, ou é o rosto que desce às mãos, mergulha no lenço, talvez este e a língua se procurem, uma língua pelo lenço adiante, uma língua é provável que vermelha, não, é tudo ainda muito a preto e branco, é tudo ainda demasiado a preto e branco para permitir um pormenor vermelho.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002