30 junho 2012

jean genet / uma solidão mortal






               (...)

               ...«uma solidão mortal»...

               Na taberna podes dizer graças,
               brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
               para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
               que desceu à pista fulgurante.
               Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
               e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
               que te julgam, temem e esperam que caias;
               vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
               de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.

               Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
               pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
               ao precípicio monstruoso dos teus olhos.

               Narciso dança?

               Sim, ma sé coisa totalmente alheia à graça sedutora,
               ao egoísmo e amor de si próprio.

               E sendo a Morte, em pessoa?

Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
               de agradar à tua imagem:
               ou a tua imagem é quem dança para ti.

               (...)






jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984







29 junho 2012

david gonzález / a caminho das sentinas







As ratazanas.

As da prisão.

A que pegámos
fogo
no centro do pátio.

Arrastavam pelo chão
com o seu corpo coberto
de chamas,
a camino das sentinas.

O Papuchi dizia:

Isso é porque
as grandes putas
sabem
que nas retretes
água

Não acredito.

Arrastavam-se nessa direcção
por ali terem a sua casa
por quererem morrer
cercadas pelos seus.

Como se fossem
seres
humanos.

Não importa,
que me lembre,
nenhuma
conseguiu
chegar.

Nenhuma.

Nunca.

Chegar.




david gonzález
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



28 junho 2012

josé régio / cântico negro






"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!





josé régio


27 junho 2012

jorge fallorca / eu conheço uma música frágil como a chuva…


  

Eu conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto leio o que escrevi.

Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio, esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto, à espera que chovesse.

Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar não existe, ou não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar.




jorge fallorca
telhados de vidro nº. 11
averno
2008




26 junho 2012

josé carlos ary dos santos / estigma


  


Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.





josé carlos  ary dos santos 




25 junho 2012

vicente huidobro / o espelho de água





O meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e afasta-se do meu quarto.

O meu espelho, mais profundo que a orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na muralha
E no meio dorme a tua nudez ancorada.

Sobre as suas ondas, debaixo de céus sonâmbulos,
Os meus sonhos afastam-se como barcos.

De pé sobre a popa ver-me-eis sempre a cantar,
Uma rosa secreta cresce no meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça no meu dedo.




vicente huidobro
1893-1948
o mar na poesia da américa latina (antologia)
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
1999




24 junho 2012

benjamin péret / a doença imaginária


  


Eu sou o cabelo de chumbo
que viaja de astro em astro
que se tornará em cometa
e num ano e num dia te destruirá.

Mas por enquanto não há dias nem anos
existe apenas uma planta viçosa
de que desejas ser semelhante

Para ser irmão das plantas
é preciso crescer na vida
ser sólido quando na morte
Ora eu sou somente imóvel
e mudo como um planeta
Vou banhando os pés nas nuvens
que como bocas em volta
me condenam a ficar
entre os que parados estão
e que as plantas desesperam

No entanto um dia
os líquidos revoltados
lançarão para as nuvens
armas assassinas
manejadas pelas mulheres azuis
como os olhos das filhas do norte

E esse dia será dentro de um ano e um dia.




benjamin péret
tradução de nicolau saião





23 junho 2012

eugénio de andrade / as mãos e os frutos XII





foto de gil t. sousa, s. joão do porto




Se vens à minha procura,
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.

Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.




eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





22 junho 2012

ana paula inácio / senhora diego rivera





O que come um génio
para além de amigas e irmãs?
que prato de especial engenho
que entremeados feitiços
ervas daninhas, pêlo de cabra, suco de espinheiro
o fará ficar
nessa companhia de circo
onde equilibramos os pratos
no gume mais esticado do trapézio
quantas quedas será preciso dar
para fazer do corpo o melhor sítio donde se avista o mundo
elevá-lo a ícone nacional
como o chili e a massa de pimentão?




ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008




21 junho 2012

josé miguel silva / vista para um pátio doze





E de repente era São João, era um bom sinal.
Caíam-nos na testa as primeiras ameixas.
Nem as mães interrompiam os mais vivos
desafios nas areias do Douro.
(Que raiva me dava não poder atravessá-lo
com os braços num raminho,
juntar aos mais audazes a minha timidez,
cuspir para o céu quando passávamos todos
à minha porta.)




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003



20 junho 2012

josé carlos barros / os monstros



  

Nos pesadelos
os monstros às vezes temem que os olhemos de frente
que possamos apagar-lhes a sombra
ou acordá-los a meio da tarde
abrindo as portada dos seus refúgios
deixando a luz avassaladora a cobrir-lhes o corpo
a queimar-lhes as pupilas remanescentes
como se fôssemos nós
os monstros
deles.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



19 junho 2012

henri michaux / venham, mais uma vez


  


Venham, mais uma vez,
venham cá, palavras miseráveis
para exprimir coisa mais miserável ainda
para exprimir o caído, o devastado, o irreconhecível
o três vezes mais temível que na sombra se prepara

Para exprimir os montes de vergonha de súbito surgidos
a tapar os horizontes
a gaiola em todo o lado, para exprimir Judas,
Para exprimir Judas multiplicado, Judas faz companhia
os dinheiros não levam muito tempo para se porem
                                                a correr atrás dos Judas


Para exprimir, as folhas caem
as frontes estalam
apagam-se as gares
estancam os caminhos
o inverno desanca à chicotada o amplo rebanho

Para exprimir braços, estômagos, julgamentos no
                                                                  garrote
e milhões vezes milhões de homens inteiros no garrote
e milhões e milhões corroídos na chaga
da chaga, na chaga da queda
ou detidos, silenciosos, contemplando a desfeita coluna
                                                  vertebral do seu futuro

Contemplando sobretudo a Estátua alta que na derrota
                                                                        dos seus
se desmoronou no pedestal
os seus destroços doem. Os seus destroços torturam.
Somos perseguidos pelos seus destroços.
A noite chega. Afastam-se os ecos. Aumenta o frio.
Um grande corpo com garras, pesando com todo o
                  seu peso, sobre o corpo está estendido.




henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999





18 junho 2012

carlos marzal / felizes os felizes



  

felizes os felizes
os mais fortes
os timoneiros do seu mar propício
os da risonha mãe do próprio
os escapados do poço da vida
os iludidos do passo dos sonhos

já estavam na sua margem e nos chamavam
os desde sempre em pose
os mais alerta
os embebidos do primeiro aroma
os do cristal de aumento sobre nada
os da lupa em paz do sol nu

honram-nos com a sua luz os atrevidos
os da desmesura
os radiantes de ser enaltecem-nos
os trágicos alegres em seu cálice

ditosos os ditosos na sua fortuna
os de humor febril do universo
os simples partidários, os devotos
os da pura razão voluptuosa

os delapidadores  nos redimem
os heróis terrestres, os sem culpa
os de já não caber em si de gozo
os da em si mesma essência
os possessos

e felizes nós outros
seus discípulos
por lambermos em mel a chaga viva
por extasiados no tempo amigo
por aprendizes deste amor demente   




carlos marzal
fuera de mí
edit. visor
madrid
2004


17 junho 2012

manólis anagnostákis / a decisão








  


Vocês são a favor ou contra?
Respondam sim ou não.
Decerto já pensaram no problema
Creio sinceramente que ele os tem preocupado.
Tudo na vida traz preocupações
Crianças mulheres insectos
Plantas nocivas, horas sem proveito
Paixões difíceis, dentes cariados
Filmes medíocres. E isto decerto os preocupa.
Sejam responsáveis e digam: Sim ou não.
A vocês é que cabe decidir.
Não lhes pedimos evidentemente que abandonem
Suas ocupações, que interrompam sua vida
O jornal preferido o bate-papo
No barbeiro os domingos ao ar livre.
Uma palavra só. Vamos, então:
Vocês são contra ou a favor?
Pensem bem: Eu fico à espera.





manólis anagnostákis
trad. josé paulo paes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





16 junho 2012

giórgos markópoulos / a crédito



  

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
de Sálona de Stereá
no dia da Páscoa mandou pintar o retrato
a um pintor ­funileiro ambulante
por um pouco de azeite arroz e um bocado de sabão.

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
pintado, foi vendido pela velha
numa feira da ladra
por uma escova de nylon por uma velha balança
e um espelho do Congo.

A tua tristeza, eh pá, tesouro,
É como a Kaisarianí nas noites de Outono.

Pára lá de me chagar com o rembétiko
por detrás das tascas, nas ruas
Os marujos naufragaram, os marujos nos petroleiros
pegando-se pelo quinhão, perderam-se para sempre.

A última vez que me escreveste, lembras-­te?
O teu recado soube-o num bar
“tens carta”, disse o fogueiro do navio,
choviam grupos de clientes que praguejavam e gritavam
e havia um rádio que chorava ao canto
“O miúdo pirou-­se na outra noite”, escrevias,
às tantas foi comprar fósforos à esquina”.


Noites enormes duplamente esfaqueadas com a amargura do infinito,
noites de barulhos surdos tirânicas e infindas
mil momentos e eternidade mil momentos e morte,
e era uma época difícil, ninguém a ouvia,
só alguma “rapaziada” despejava as noites nas tascas
a juntar-­se ao mal e à guerra civil, diz­-se,
mas quem sabia dessas coisas
via a solidão a torturar e a culpa a espreitar,
até que certa noite te voltámos a ver num palácio mudo sozinha
“ei... como vais?” gritámos, deus meu.
O nosso corpo e o teu corpo
molde de gesso estragado pela chuva e pelos anos
como quartel da guarda em ruínas quartel da guarda
“hão-­de vir uma noite aqueles que esquecemos, dissemos­-te,
de rosto inexistente
o crânio cheio de lagartos e nu
descerão passo a passo sozinhos
descobrirão uma alegria pela vida
por sobre as casas e os túmulos
descobrirão uma alegria pela vida
um amargor de amor por nós e pelos mortos”,
e depois tornaste a desaparecer.

─  Abri um pouco o rádio, a luz e as janelas
porque, na verdade, que vergonha morrermos nos nossos lençóis brancos
enquanto todos os nossos amigos foram assassinados nos passeios.


Os assaltantes do inferno.


  

giórgos markópoulos
trad. manuel resende





15 junho 2012

almeida garrett / o anjo caído


  


Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
De asa morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.

Vi-o eu, o anjo de Deus,
Vi-o nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.

Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos céus
Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?

Eu só e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Craveia-a eu nessa cruz
Minha alma que renascia
Que toda em sua alma pus.
E o meu ser se dividia,

Porque ele outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.




almeida garrett
folhas caídas




14 junho 2012

egito gonçalves / tudo vai bem, amor!...






Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam guetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
─  a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.





egito gonçalves
o vagabundo decepado
edição notícias do bloqueio
1958