15 abril 2015

ernesto sampaio / para uma cultura fascinante


Uma arte poética, admitida a relação analógica tradicional entre as estruturas do homem e do universo, é sempre uma cosmogonia. As leis que regem os mais íntimos e essenciais fenómenos da criação humana dizem respeito à mesma realidade que criou o homem, dele fez a sua expressão impermanente, mutável como a expressão do próprio homem, mas mais livre, porquanto a humana expressão é reflexo doutra realidade prestigiosa e a expressão dessoutra realidade não é reflexo senão do infinito, cujo conceito e cuja imagem próxima do olhar humano nos espiam por trás de cada objecto, órbitas vazias geradoras da angústia que raspa, imagem após imagem, todas as que não reflectem a Lei, e estas são as que exprimem termos de encontro superficiais e falsos, ou simplesmente menos reais, com o mundo e com a vida, comodamente integrados na consciência humana por tudo o que no homem é criação intelectual mas não é conhecimento.

A análise dos fenómenos da criação humana à luz de uma mítica Consciência universal pode, por alguns, ser considerada demasiado arbitrária, embora, e no plano sensível, sejam muitos os fenómenos que permitam  elaborar uma relação entre o incriado e a sua emanação — o cosmos, e a inconsciência e a sua emanação — a consciência, cosmos e consciência que se organizam similarmente segundo uma sua interna necessidade— a de saírem do caos e revelarem-se, limitando-se num objecto onde a ideia encarna para que a consciência que a criou se conheça. O objecto criado é depois reabsorvido pela noite de onde saiu, regressa ao caos, apagada a Ideia viva que o formou,  extinto o reflexo do arquétipo universal, da Ideia pura que alimenta o homem e os seus esforços para alcançar de si mesmo a Consciência absoluta, Ideia que é ela própria alimentada por esses esforços, sem os quais, admitindo que a consciência humana dela não teria conhecimento se dela não fosse um reflexo, não existiria.

Considerar arbitraria a realidade mítica do mundo que o homem pretende alcançar equivale a negar a possibilidade de o sujeito se poder equivaler ao seu objecto, equivale a negar ao homem a conquista de um estado unificado da consciência, equivale a negar a Poesia. Porque o poeta é o homem que consegue, quando o seu Verbo encarna, alcançar estados de consciência absoluta, de absoluta vidência. O poeta é precisamente o único homem cujo funcionamento espiritual não é arbitrário, é real, o único que consegue mover-se no presente e dele falar. O resto é ignorância.

É claro que este poeta a que me refiro é raro, tão raro como são raros os verdadeiros iniciados, e isto porque o conhecimento pressupõe a anulação individual de quem conhece, depende da capacidade que o eu porventura possua de substituir o seu inconsciente particular pelo inconsciente colectivo, aplicando contra este a sua consciência, diluciidando-o, e assim dilucidando uma primeira realidade mais vasta e concreta que a realidade do eu, condição básica para o conhecimento da Realidade Mítica, o qual é pura descontingenciação, libertação.

Para que o eu prossiga sem falhas o seu esforço pelo conhecimento, precisa de encontrar formas definitivas, reais formas de comunicação com os outros eus. Sem essa comunicação não pode provar, não pode medir absolutamente a veracidade da expressão do real no seu corpo.

A expressão do real é a Poesia.

A expressão do real no meu corpo é o Teatro.

O Teatro é a Poesia concreta.

Ritmos e sons, eis o concreto. Eis o objecto original, a redução ao sensível de todo o conceito, de toda a ideia criadora. O Teatro é a expressão da necessidade demiúrgica da consciência humana: concretizar ritualmente, por transmutação analógica, o primeiro ritmo e o primeiro som. Integrar a consciência no corpo, carregar o corpo dos prestígios criadores que circulam na natureza — eis a função do Teatro. O lugar onde esta operação se efectua é o único onde o homem se pode inserir na sua realidade total, o único onde o poeta-actor pode fazer agir a realidade total sobre a humana inconsciência da sociedade e pode vencê-la, o único onde pode obrigar a sociedade a participar da sua consciência, a ser dela elemento activo e integrante.

Ser absolutamente consciente — eis o primeiro objectivo. Eis a condição especiosa e teatral para ultrapassar a nojenta situação de ser condicionado, fantoche do Bom e do Justo, imundo agente dos sentimentos, dos juízos, da luxúria, do temperamento «humano, demasiado humano». «O homem é uma coisa que deve ser ultrapassada» (suponho que a afirmação é de Nietzsche), esta é a primeira aquisição a purificar a nossa vontade, o primeiro esboço terrivelmente inquieto de um sangue destinado a ser livre ou, pelo menos, a tentar sê-lo até onde o permitir a sua resistência à força da dor.


ernesto sampaio
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





14 abril 2015

antónio gancho / prisão




Tu tinhas uma nascença que era uma prisão
uma certeza de estar concreto e unido
com a matéria de pedra
Que era uma tua sedimentação de vida
uma tua construção de movimentos a sair das grades
Era rico em Sol o teu peito de grades
concreto e unido sedimentavas dias de espera
duma letra que te abrisse os instintos para
falares de nada.
Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria
uma certeza de estares virado para um
nascente de inconcretidade material
tinhas uma mão de peça de artilharia
de disparares para fora o conteúdo dos dias com
raiz de mesa própria
Eras um sol a nascer-te no sítio da grade
onde se punham ramos de quinta-feira de campo.
Tinhas uma natureza de estares sentado
Sobre uma cadeira que era a tua
esperança de estares unido com a nascença do movimento.
Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro
um ser-te uma mágica a fusão de
olhar com a dimensão de esperança fora.
Eras-te igual à matéria da tua animação de selva
íntima
igual ao cantar-te seródio o tempo de pendular
na cabeça
Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma
navalha de vento
mas era tua inspiração de um modo interior de vida.
Criavas um espaço aberto na clareira duma grade
que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento
Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias
por fora da mão
Tu tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço
duma grade
tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia
inaugurado de verde
Que se te abrisse a letra
era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta
sem um rogar de branco.
O sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti
era nada de o poente estar no sentido inverso.


antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




13 abril 2015

edmundo de bettencourt / o segredo e o mistério



Mistérios a pouco e pouco vão morrendo,
e extenuados de vigílias os anjos
são afinal as sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia da ternura…

Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça,
a quem um sono de embrião já tolda os olhos,
sorriem enigmáticos os sonhos.


  

edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985




12 abril 2015

alexandre o'neill / a noite ordinária




Que bela noite ordinária que eu passei!


Foi isso há tempos
num quarto defendido pelas pulgas
e vigiado por um vento carteirista
que morava (disseste)
mesmo ali ao pé.

O problema da luz foi o primeiro
(que resolvemos apagando-a)
depois o das torneiras
depois o do marinheiro
que queria entrar nos nossos problemas
depois o teu
o teu problema já na cama
- na cama com mais paciência que encontrei!

Depois
falaste com as torneiras
e eu gritei

Gritei por calculado amor
por brilhantina
por miséria
gritei até pela vitória
(supremo humor!)
dos que se batem contra a Cara-Alegre
gritei p'ra não parar de gritar
gritei «Chapultepec!» e «Oaxaca!»
(nomes por excelência afrodisíacos)
gritei até descobrir
o sítio em que te «escondias»
e então deixei-te gritar...

Quando a noite resignada
abria a última pálpebra
gritei ainda: «Mas é isto o espelho!»

E o dia levantou-se como um cão
(imagem acessível à família...)
da bela noite ordinária
que passei...



alexandre o'neill




11 abril 2015

ricardo reis / vivem em nós, inúmeros



Vivem em nós, inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem eu sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

  

ricardo reis



10 abril 2015

josé ángel cilleruelo / um senhor de azul



e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




09 abril 2015

cecília meireles / é preciso não esquecer nada



É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.

  

cecilia meireles





08 abril 2015

gonçalo m. tavares / a cabeça



Esta cabeça que aceita tudo como os pobres,
impossível desligá-la, fazer uma muralha,
fechar o sítio de onde sai o que se pensa.
Mas os acontecimentos exteriores ainda assustam,
ou divertem,
      e não consigo parar.
A carne se fosse metal seria melhor,
              mas não é melhor,
nunca é melhor.

  

gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




07 abril 2015

cesare pavese / a velhice – ou a maturidade…



6 de dezembro de 1938

A velhice – ou a maturidade desce também sobre o mundo exterior. A rígida e transparente noite invernal, que desenha as silhuetas das casas num céu que espere a neve, tocava outrora o coração e abria um mundo de angústia heroica.

Com o tempo, não é necessário movermo-nos no mundo exterior para vivermos a angústia que ele provoca: basta um rápido aceno, saber que existe e existe em nós, e esperar um mundo inteiramente feito de vida interior, que adquiriu agora a novidade e a fecundidade da Natureza. A maturidade é também o seguinte: não procurar fora, mas deixar que fale, com o seu ritmo (que é o único que conta), a vida interior. Daqui em diante, o mundo exterior é material e pobre perante a inesperada e profunda autoridade das recordações. Também o nosso sangue e o nosso corpo amadureceram e ficaram impregnados de espiritualidade, de ritmo largo.

Renasce, como corolário, o antigo pensamento de que o génio é fecundidade ─ oitenta tragédias, vinte romances, trinta óperas, etc. porque o génio não é descobrir um tema exterior e dar-lhe um tratamento literário brilhante, mas conseguir finalmente possuir a nossa própria experiência, o nosso próprio corpo, as nossas próprias recordações, o nosso próprio ritmo ─  e exprimir, exprimir este ritmo, fora dos limites dos enredos, da matéria, na perene fecundidade de um pensamento que, por definição, não tem fundo.

A juventude não tem génio e não é fecunda.


  

cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




06 abril 2015

maria do rosário pedreira / os amantes aparecem no verão


                                                                  para João Guímarães


Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos

desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam

trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.
  



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002





05 abril 2015

miguel torga / ressurreição



Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza dum rebento
Na seiva do poema que sonhou.


miguel torga
libertação
1944




04 abril 2015

josé antónio almeida / monólogo da oliveira



Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra

muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos

─ a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras

como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados

de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:

o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.



josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



03 abril 2015

agustina bessa-luís / oliveira, manoel de







  
É um visionário. O seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manuel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo.

*
Como um Bergman ou um Dreyer, ficará para sempre um mistério para os seus contemporâneos. Umas vezes é subtil, outras é sarcástico, raramente é amoroso e abandonado a um sentimento terno. Abandona-se à perfeição e nada mais. Há nele um empenho de contradição, o que faz a força da sua obra tão variada, tão inesperada e tão controversa.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008