01 julho 2024

john ashbery / a vida como um livro que se fechou

 



 

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.
 
Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?
 
Falámos um com o outro,
Levámos cada coisas só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.
 
Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz que bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.
 
 
 
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992
 




30 junho 2024

juan ramón jimenez / virá um dia um homem




 
109
 
Virá um dia um homem
que, lançado sobre ti, tente despir-te
do teu luto de ignota,
– palavra minha, hoje tão nua, tão clara!
Um homem que te creia
sombra feita água de delgado murmúrio,
a ti, voz minha, água
de luz tão simples!
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’ água
1992




 

29 junho 2024

jorge luís borges / o despertar

 
 
 
Entra a luz e ascendo inertemente
Dos sonhos para o sonho repartido
E as coisas recuperam o seu devido
E aguardado lugar e no presente
Concentra-se, opressivo e vasto, o vago
Ontem: as seculares migrações
Das aves e dos homens, as legiões
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Também regressa a quotidiana história:
Meu rosto, minha voz, receio e sorte.
Ah, se aquele outro despertar, a morte
Me apresentasse um tempo sem memória
Do meu nome e de tudo o que fui sendo!
Se nesse dia houvesse esquecimento!
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




28 junho 2024

júlio pomar / explicação aos que já sabem



 
 
          A invenção da palavra não tem data
nem número de registo.
A palavra inventa e inventa-se cada dia e é isso que
à falta de melhor se chama poesia.
 
“À falta de melhor” é critério
manhoso de quem não teve
sempre o necessário e passa o tempo
a busca-lo no que mais se aproxima.
 
Tiro de zagalote ou granada, a poesia mina
cada estilhaço
da via sacra dos significados
e não há contraceptivo que a proteja.
 
Aprendeu a poesia à mesa do bilhar
ao levar as bolas a tocarem-se
quando para isso
desejo e arte andarem de mão dada.
 
Troque-se as bolas por coisas ou palavras e
siga a banda! a compor com os limites porque tudo é música
e, afinados os trompetes, tire-se
de coisas e palavras
 
 
a mistura explosiva.
 
 
 
júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004
 




 

27 junho 2024

josé pascoal / sal grosso

 
 
 
No movimento piscatório,
Os pescadores sofrem
De hipotermia.
 
Navalhas frias
Enterram-se nos ventres
Vazios.
 
E na terra parada
Há quem se aqueça
Com peixe assado
Na brasa.
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018



26 junho 2024

anna akhmatova / quando morre um homem

 
 
 
Quando morre um homem
Todos os seus retratos mudam.
Os olhos observam-nos de forma diferente,
Os lábios sorriem com outro sorriso.
Dei por isto ao regressar
Do funeral de um poeta.
Constatei-o depois inúmeras vezes
E a minha suposição confirmou-se.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



25 junho 2024

rené char / os primeiros instantes

 
 
 
Víamos correr diante de nós a água que aumentava. Apagava de repente a montanha, expelindo-se dos seus flancos maternais. Não era uma torrente que se oferecia ao seu destino, mas um animal inefável, em cuja palavra e substância nos tornávamos. Retinha-nos apaixonados sob o arco todo-poderoso da sua imaginação. Que intervenção teria podido constranger-nos? Já não se fazia sentir a exiguidade quotidiana, o sangue derramado fora restituído ao seu calor. Adoptados pelo espaço aberto, desbastados até ao invisível, éramos uma vitória que jamais teria fim.
 
 
 
         
rené char
a fonte narrativa (1947)
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




24 junho 2024

konstantinos kaváfis / longe

 
 
 
Quisera evocar esta lembrança…
Mas já se esvaiu… como se nada restasse –
porque jaz longe, nos primeiros anos de juventude.
 
Uma pele como que feita de jasmim…
Essa noite de Agosto – seria Agosto? – essa noite…
Apenas lembro por fim os olhos; eram, creio, azuis…
Ah, sim, azuis! – um perfeito profundo azul.
 
1914
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017



23 junho 2024

ibn muqânâ / ó homem de alcabideche

 
 
 
ó homem de Alcabideche
que não te faltem sementes.
que o labor do teu moinho,
cuja vela o vento mexe,
possa ter o remoinho
que dispensa as correntes.
em ano bom só terás
não mais que vinte medidas
pois que as restantes verás
pelos javalis comidas.
é terra de pouca valia,
como eu próprio, agora surdo.
deixei corte luzidia,
mais o seu luxo absurdo.
em Alcabideche estou
no campo silvas cortando
com a podoa trabalhando.
se alguém te perguntar
se do teu trabalho gostas
tu responde-lhe que sim:
quem ama ser livre assim
de bom carácter dá mostras.
basta-me só o amor
e dádivas que recolhi.
deixei tudo sem rancor
e em tempo de primavera
a este chão me acolhi.
 
 
 
ibn muqânâ
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999
 
 


22 junho 2024

adília lopes / arte poética

 



 

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
os nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo d enão chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
 
 
adilia lopes
um jogo bastante perigoso (1985)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004



21 junho 2024

adam zagajewski / na beleza criada pelos outros

 
 
Só na beleza criada pelos outros
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



20 junho 2024

jean cocteau / situação de mallarmé

 



 
Uma juventude presa do maravilhoso e do cinismo prefere não importa que médium de feira, não importa que escroque, a este modelo de homem honesto, de burguês íntegro, de aristocrata consumado, de operário fervoroso, de joalheiro: Mallarmé. Humano, demasiado humano. Confesso, pela minha parte, desaparecida a sombra que o nimbava, não ver nele senão o modern-style da joalharia.
 
Se Mallarnmé lapida pedras preciosas, são, em vez de diamante, uma ametista, uma opala, uma gema da tiara de Herodíades no Museu Gustave Moreau.
 
Rimbaud roubou os seus adiamantes: mas onde? É esse o enigma.
 
Mallarmé, o sábio, fatiga-nos. Merece a dedicatória suspeita das Fleurs du Mal, que Gautier não merece. Rimbaud conserva o prestígio da receptação, do sangue; nele, o diamante é talhado em vista de uma efracção, com o único fim de cortar um vidro, uma montra.
 
Os verdadeiros mestres da juventude entre 1912 e 1930 foram Rimbaud, Ducasse, Nerval, Sade.
 
Mallarmé influencia mais o estilo do jornalismo.
 
Baudelaire vai ganhando rugas, mas conserva uma juventude surpreendente.
 
Cada um dos versos de Mallarmé foi, desde o nascimento, uma bela ruga fina, estudiosa, nobre, profunda. Esse ar mais de velhice que de eternidade impede a sua obra de envelhecer aqui ou ali e confere-lhe uma aparência de conjunto enrugada, análoga à das linhas das mãos, linhas que fossem, porém, decorativas, em vez de proféticas.
 
 
 
jean cocteau
ópio
trad. miguel serras pereira
difel
1984





19 junho 2024

steve klepetar / futuro

 



 
A minha mãe lia
o futuro enquanto limpava,
 
vendo as nossas vidas
todas desenrolar-se
 
reflectidas em poças de água
escorregadias no chão da cozinha.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018