13 abril 2023

manuel resende / a parteira da história

 



 
Já nem sequer se consegue amar nem odiar a parteira da
     História e, vendo bem, que nos resta senão o humilde
     gosto de saber o trabalho bem feito quando o há,
De escovar a mão por fim preguiçosa na cadeira acabada?
Quanto a corpo, temos conversado, menino mimado
     sempre a pedir atenção e médicos e cama de dormir.
De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada
     lá dentro
A que nos agarrarmos.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



12 abril 2023

novalis / os hinos à noite

 



 

 
2
 
Terá a manhã sempre que voltar? Não terminará jamais o poder da Terra? Agitação nefasta consome o celeste poisar das asas da Noite. Jamais ficará a arder sem fim a secreta oferenda do amor? O tempo da Luz é imensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço. – Perene é a duração do sono. Sagrado sono, não sejas avaro de teus benefícios para todos os que nesta jornada terrena se consagram à Noite. Só os loucos te desconhecem, não sabendo de outro sono que a sombra que tu misericordiosamente sobre nós lanças no crepúsculo dessa vera Noite. Eles não te sentem no dourado caudal das uvas – na maravilha do óleo de amêndoas, no suco escuro da papoila. Não sabem que és tu que pairando no contorno dos seios das tenras donzelas tornas o seu regaço o Céu – não supõem que tu, vindo de histórias antiquíssimas ao nosso encontro, vens para abrires o Céu e trazeres contigo as chaves das moradas dos bem-aventurados, mensageiro silente de infindáveis segredos.
 
 
 
novalis
os hinos à noite
tradução de fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998




11 abril 2023

léo ferré / eu cá sou da raça ferroviária

 



 

[…]
 
     Eu cá sou da raça ferroviária que fica a ver passar as
vacas
     Se não comêssemos as vacas, os carneiros e os restos
     Não conheceríamos nem as vacas, nem os carneiros nem
os restos…
     No fim de contas, criam-nos para nos darem bicadas
     Então, sejamos nós a dá-las!
     Costeleta para duas pessoas, conheces?
 
     Felizmente há a cama: um parque de estacionamento!
     Vens, meu amor?
     E depois, é como na roleta: apostamos, apostamos…
     Se a roleta só tivesse um buraco, obrigavam-nos a apostar
na mesma
     Aliás, é o que fazemos!
     Compreendo os jogadores: têm trinta e cinco possibilidades
de não se deixarem enrabar…
     E deixam, deixam…
     O drama, no casal, é que são dois
     E só há um buraco na roleta…
 
[…]
 
 
léo ferré
il n´y a plus rien / já não há nada
trad. antónio ferreira, luísa mariante e maria paiva
ler devagar
2017





10 abril 2023

jacques brel / o último repasto



 

No meu último repasto
Quero ver os meus irmãos
E os meus gatos e os meus cães
E a beira do mar
No meu último repasto
Quero ver os meus vizinhos
E também alguns Chineses
Em jeito de primos
E quero que se lá beba
Além do vinho da missa
Aquele vinho tão bonito
Que se bebia em Arbois
Quero que se lá devore
Após umas tantas sotainas
Uma faisoa
Vinda do Périgord
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver as árvores fechar os
Braços para dormir
E depois quero ainda
Atirar pedras ao céu
E gritar Deus morreu
Uma última vez
 
No meu último repasto
Quero ver o meu burro
As minhas galinhas e os meus gansos
As minhas vacas e as minhas mulheres
No meu último repasto
Quero ver essas desavergonhadas
De quem fui dono e senhor
Ou que foram minhas senhoras
Quando tiver na pança
Com que afogar a terra
Quebrarei o meu corpo
Para impor silêncio
E cantarei aos berros
Para a morte que chega
As canções libertinas
Que metem medo às freirinhas
Depois quero que me levem
Ao cimo da minha colina
Ver o crepúsculo que se encaminha
Lentamente para a planície
E aí ainda de pé
Insultarei os burgueses
Sem medo e sem remorsos
Uma última vez
 
Após o meu último repasto
Quero que se vão todos embora
Que continuem o festim
Mas não sob o meu tecto
Após o meu último repasto
Quero que me instalem
Sentado só como um rei
Acolhendo as suas vestais
No meu cachimbo queimarei
As recordações de infância
Os sonhos inacabados
Os restos de esperança
E apenas conservarei
Para vestir a minha alma
A ideia de uma roseira
E um nome de mulher
Depois olharei
O cimo da minha colina
Que dança que se adivinha
E acaba por se afundar
E entre o cheiro das flores
Que não tarda a extinguir-se
Sei que terei medo
Uma última vez
 
 
 
jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997
 




 

09 abril 2023

laurie anderson / nascido, nunca interrogado

 



 
Era uma sala grande. Cheia de gente. De todo o género.
E tinham chegado todos ao mesmo edifício
Mais ou menos na mesma altura.
E eram todos livres. E interrogavam-se todos acerca do mesmo
                    assunto:
O que haverá por trás daquela cortina?
 
Tinhas nascido. Por isso, eras livre. Então, parabéns.
 
 
 
laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997




08 abril 2023

david byrne / sem compaixão

 



 
Num mundo em que as pessoas têm problemas,
Num mundo em que as decisões são um modo de vida…
Os problemas de outras pessoas arrasam-me a cabeça.
A compaixão é uma virtude, mas eu não tenho tempo.
Tanta gente que tem os seus problemas.
Não estou interessado nos seus problemas.
Acho que já tive alguns problemas,
Mas agora tomei umas decisões.
Leva muito tempo a afastar o disparate
Forçais a minha compaixão até às últimas.
O meu nível de interesse baixa, o meu nível de interesse baixa.
Já ouvi o suficiente.
Não quero ouvir mais nada.
 
Estás o quê, apaixonado pelos teus problemas?
Acho que levaste isso longe demais.
Não é nada fixe ter um problema,
Não esperes que eu explique a tua indecisão.
Vai falar com o analista, não é para isso que lhe pagam
Andas… Falas… ainda funcionas como dantes.
Não tem nada a ver com a tua personalidade ou estilo.
Sê um pouco mais egoísta.
É capaz de te fazer bem.
 
 
 
david byrne
pontos de vista
trad. de jorge pires
assírio & alvim
1988




07 abril 2023

leonard cohen / nada posso perder


 
Quando deixei a casa de meu pai
o sol estava a meia altura,
o meu prendeu-o ao meu queixo
como um rainúnculo amarelo.
 
O meu era um bruxo
um feiticeiro, trapaceiro, mentiroso
mas aquele foi o seu melhor truque,
despedimo-nos com um beijo em chamas.
 
Um quilómetro acima das cataratas de Niágara
uma pomba trouxe-me a notícia
da sua morte. Não perdi um passo,
não há nada que possa perder.
 
Amanhã inventarei um truque
que esta noite ignoro,
o vento, o poste dir-me-ão qual
e a amistosa luz que cega.
 
 
 
leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999


 


06 abril 2023

bob dylan / soprando no vento

 



 
Por quantas estradas tem um homem de andar
Até que se possa chamar-lhe homem?
Sim, e quantos mares tem uma pomba branca de cruzar
Até que durma na areia?
Sim, e quantas vezes devem as balas de canhão voar
Até serem para sempre banidas?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
Quantos anos pode uma montanha existir
Até ser levada pelo mar?
Sim, e quantos anos têm algumas pessoas de existir
Até que lhes permitam ser livres?
Sim, e quantas vezes pode um homem virar a cabeça
Fingindo que nada vê?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
Quantas vezes tem um homem de erguer o olhar
Até que possa ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos deve um homem ter
Até poder ouvir pessoas a gritar?
Sim, e quantas mortes serão precisas até que saiba
Que demasiadas pessoas morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
the freewheelin
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008




05 abril 2023

sharon olds / a mãe

 
 
No alheado silêncio que se segue ao banho,
quente na toalha branca de leite, o meu filho
anuncia que eu não o hei-de amar quando morta
porque as pessoas não são capazes de pensar quando mortas. Começo
por não ser capaz de pensar – não o amar? O ar de fora
da janela é todo preto, a velha espigueta
começou já a perder as folhas…
aperto-o contra mim, branco como uma bóia
e a minha morte como água negra emerge
velozmente no quarto. Digo-lhe que o amava
antes de ele ter nascido. Não lhe digo
ai de mim se o não amar depois de
morta, sendo afinal a necessidade
a mãe do engenho.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004
 



04 abril 2023

jane hirshfield / fado

 



 
Um homem aproxima-se
e da orelha de uma rapariga
tira vinte cêntimos
e uma pomba das mãos
que ela não sabia que lá estava.
O que é mais surpreendente,
pode perguntar-se:
o murmúrio denteado da moeda
de encontro ao polegar
ou o silêncio da pomba tocado pelos nós dos dedos?
Que ele os tenha descoberto
ou que ela não
ou que em Portugal,
neste preciso momento de breve pausa,
seja quase madrugada
e uma mulher numa cadeira de rodas
cante o fado
que coloca as vidas dos que estão na sala
num prato de uma balança,
a si no outro,
o os dois pratos em cobre se equilibrem.
 
 
 
jane hirshfield
a mulher do casaco vermelho
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




03 abril 2023

louise glück / parábola



 
Primeiro prescindimos dos bens do mundo, como ensina São
     Francisco,
para não se distraírem as nossas almas
com ganhos ou perdas, e também para
os nossos corpos se sentirem livres de mover-se
facilmente entre as montanhas, e coube-nos então discutir
em que direcção ou onde viajar, sendo a segunda questão
o termos ou não um propósito, contra o qual
muitos alegámos com afinco que tal propósito
equivalia aos bens do mundo, implicando uma limitação ou óbice,
ao passo que outros diziam ser tal palavra que nos consagrava
peregrinos em vez de vagabundos: nos nossos espíritos, a palavra
     traduzia-se
num sonho, uma coisa de demanda, de modo que, concentrando-nos,
     a veríamos
talvez a reluzir entre as pedras, em vez de
passarmos por ela às cegas; debatemos
também à saciedade cada um dos assuntos consequentes, a esgrimir
     argumentos,
de modo que, diziam alguns, íamos ficando menos flexíveis e mais
     resignados,
como soldados numa guerra inútil. E a neve caiu sobre nós e o vento
     soprou
e a seu tempo amainou – onde estivera a neve surgiram muitas
     flores,
e, onde brilhavam as estrelas, ergueu-se o Sol sobre o horizonte
     de árvores
de modo que voltámos a ter sombras; o que aconteceu muitas vezes.
Também chuvas, também cheias às vezes, também avalanches,
     em que
alguns de nós se perdiam, e recorrentemente tínhamos a impressão
de que chegáramos a um acordo, com os cantis
alçados aos ombros; mas sempre esse momento passava, e assim
(muitos anos depois) continuávamos naquela primeira fase,
     ainda
a preparar-nos para começar uma viagem, mas em todo o caso
     estávamos mudados;
reparávamos nisso uns nos outros; tínhamos mudado, embora
nunca nos movêssemos, e um disse, ah, vejam como envelhecemos,
     a viajar
apenas do dia à noite, nem para frente nem para os lados, o que
     estranhamente
parecia milagroso. E quem acreditava que devíamos ter um propósito
acreditou que era esse o propósito, e quem achava que devíamos
     permanecer livres
para encontrar a verdade achou que ela se nos revelava.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021



 

02 abril 2023

isabel meyreles / o livro do tigre

 




 

 
           VII
 
Libertei os demónios,
é inútil que se escondam
atrás da fonte cor-de-rosa
do Jardim das Delícias,
sei que estão lá,
de nada serve atravessar
este mar encristado de cavalos selvagens,
a praia terá dentes
e dedos de enxofre e de sal,
as armadilha-para-sonhos já levantam
as cabeças de arestas petrificadas
e o tempo, o tempo, esse,
penteia os seus cabelos de areia negra
e alimenta-se do meu desejo de ti.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004
 




01 abril 2023

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
2
 
É uma casa velha, na montanha, com portas que guincham e uma humidade que a circunda a toda a hora, como um pano de cozinha encharcado em vinagre. Também há aranhas que parecem feitas de teia metálica, gavetas não marcadas que custam a abrir, recantos onde a vassoura nunca chega, uma chaminé de cinzas cansada. Como poderia falar de uma casa que é ao mesmo tempo tantas casas? Repara, parece uma caixa mágica estofada de espelhos: abre-a, e lá de dentro sai outra; abre-a, e lá de dentro sai outra; abre-a, e lá de dentro sai outra. Talvez por isso se diga que as casas são como as pessoas.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021