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01 abril 2023

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
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É uma casa velha, na montanha, com portas que guincham e uma humidade que a circunda a toda a hora, como um pano de cozinha encharcado em vinagre. Também há aranhas que parecem feitas de teia metálica, gavetas não marcadas que custam a abrir, recantos onde a vassoura nunca chega, uma chaminé de cinzas cansada. Como poderia falar de uma casa que é ao mesmo tempo tantas casas? Repara, parece uma caixa mágica estofada de espelhos: abre-a, e lá de dentro sai outra; abre-a, e lá de dentro sai outra; abre-a, e lá de dentro sai outra. Talvez por isso se diga que as casas são como as pessoas.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021
 



13 outubro 2022

gemma gorga / a casa

 
Os ossos são longos corredores onde faz sempre
frio, como se a morte tivesse deixado a porta
aberta. Talvez seja no coração que primeiro
germina a espora da dor, húmida e vermelha,
mas é nos ossos que essa dor perdura,
insistente, como um grão de areia feito pó.
O ar fica carregado, e desprende-se, dispara, espalha
fotografias sobre estas toalhas
onde é tão difícil acabar o jantar
agora que já não existes, agora que a sala se enche
de absurdas borboletas da memória.
Tento prender-lhes as asas com agulhas
muito finas, mas sem querer perfuro os meus próprios dentes
e lábios. E já não consigo dizer, já não consigo fazer
mais nada a não ser passa-las de uma mão para a outra:
fotografias como pequenas caveiras
entre o ser do passado e o não ser do presente.
 
 
 
gemma gorga
a desordem das mãos (2003)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

16 agosto 2021

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
6
 
Está tudo pronto à espera que chegues para começar a existir: os pratos em cima da mesa, o brilho nocturno nas chávenas, o calor nas almofadas, a cera derretendo como açúcar pernas abaixo. A iminência é um penhasco por onde agora passeio em bicos dos pés, contendo a respiração, sabendo que de um momento para o outro se ouvirá a campainha e me precipitarei no puro presente de ti, como uma espada deleitada face ao dardo veloz. Mas ainda não. Apesar de andar de um lado para o outro, apesar de compor o cabelo, apesar da lentidão audível do relógio, apesar desta espera que poderíamos dizer quimicamente pura.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

12 julho 2021

gemma gorga / a identidade

 



 
À noite, entre as tuas mãos, sou dócil
como uma gota de mercúrio. quero
rolar e quebrar-me em mil espelhos, mil
pequenas esferas de água densa onde
te possa derramar enquanto contemplo o teu
rosto, e te interrogo desde mim.
 
 
 
gemma gorga
instrumentos ópticos (2005)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021