Os ossos são longos corredores onde faz sempre
frio, como se a morte tivesse deixado a porta
aberta. Talvez seja no coração que primeiro
germina a espora da dor, húmida e vermelha,
mas é nos ossos que essa dor perdura,
insistente, como um grão de areia feito pó.
O ar fica carregado, e desprende-se, dispara, espalha
fotografias sobre estas toalhas
onde é tão difícil acabar o jantar
agora que já não existes, agora que a sala se enche
de absurdas borboletas da memória.
Tento prender-lhes as asas com agulhas
muito finas, mas sem querer perfuro os meus próprios dentes
e lábios. E já não consigo dizer, já não consigo fazer
mais nada a não ser passa-las de uma mão para a outra:
fotografias como pequenas caveiras
entre o ser do passado e o não ser do presente.
a desordem das mãos (2003)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021
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