25 outubro 2022

julien gracq / inabordável

 
 
É uma jovem mulher sob os passos da qual as imagens se erguem, profusas. Por vezes, numa senda de abril, ela levanta uma mão mole e doce tal uma pena e acalma, como que a contra-gosto, as inquietudes da paisagem – ou então a misteriosa assinatura do seu andar entre margens de betume rivaliza com o mais belo instrumento do literato. Gosto de seguir os meandros duma rua colorida, o fio dessa melodia de morte súbita que a sua aparição repercute, dum lado para o outro, do horizonte das fachadas. Que rua sonora – onde um teatro arrasado, vitrinas estilhaçadas, ardinas uivando o mais belo assassínio do século – que vidrilhos pintados a sangue, que belo sangue espumando e cantando algo parecido a trinados, a harpejos, que flácida inflexão de saxofone poderá alguma vez valer, para mim, o olhar que ela derrama, a partir do canto do seu olho preciso e sereno, o regato magnético do seu olhar que corre transbordante entre as casas como a saliva ácida dum glaciar?
 
 
 
julien gracq
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021



 
 

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