É uma jovem mulher sob os passos da qual as imagens
se erguem, profusas. Por vezes, numa senda de abril, ela levanta uma mão mole e
doce tal uma pena e acalma, como que a contra-gosto, as inquietudes da paisagem
– ou então a misteriosa assinatura do seu andar entre margens de betume
rivaliza com o mais belo instrumento do literato. Gosto de seguir os meandros
duma rua colorida, o fio dessa melodia de morte súbita que a sua aparição
repercute, dum lado para o outro, do horizonte das fachadas. Que rua sonora –
onde um teatro arrasado, vitrinas estilhaçadas, ardinas uivando o mais belo
assassínio do século – que vidrilhos pintados a sangue, que belo sangue
espumando e cantando algo parecido a trinados, a harpejos, que flácida inflexão
de saxofone poderá alguma vez valer, para mim, o olhar que ela derrama, a
partir do canto do seu olho preciso e sereno, o regato magnético do seu olhar
que corre transbordante entre as casas como a saliva ácida dum glaciar?
julien gracq
sonhador definitivo e perpétua
insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua
francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
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