06 agosto 2022

eduardo pitta / no enredo dos caminhos

 
 
1.
 
Os cães eram mudos e deu com eles por
acaso, farejando relógios de areia.
Naquela terra árdua havia ainda o enigma
dos homens e do seu alfabeto traído.
 
Podia pensar-se num simulacro. Era apenas
método. A obstinada construção de uma vontade
sem objecto.
Teria voltado fosse como fosse.
 
2.
 
Antes de nós outros tentaram.
Muitos não sabem que viagem alguma
se repetirá. Toda a demanda é vã.
Aquele muro não está ali
 
por acidente. Sequer a gosto de qualquer
feitor com inclinações pré-rafaelitas.
A manhã tinha ficado parecida com um pedaço
de vidro e era nítida a evidência de desastre.
 
 
3.
 
As coisas são como são.
Sempre haverá uma mão senhora de exemplar
desprendimento, atenta ao sufoco
e à deslocação da alma.
 
Assim foi, por socalcos de tabaco,
o enredo dos caminhos, ardente
magia. Pouco importa saber
que toda a paisagem mente.
 
 
4.
 
Gente propensa a ver a luz por um funil
a vê-la assim em corredores,
esplendidamente ignorante das forças vitais,
de qualquer alegoria. Esse sentido
 
mediúnico, três vezes milenário, de fabular
a perversa mudez dos animais.
Contudo eles estão onde os encontramos.
E estão simplesmente calados.
 
 
 
eduardo pitta
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




 

05 agosto 2022

emanuel jorge botelho / viagem, (estudos)

 
 
1.
 
que golfinho cortou a pele da água,
o mapa embuçado
nas esquinas do medo?
 
quem sarou a morte do sal?
 
 
2.
 
há uma âncora de fogo
no porão dos anjos
 
na fuligem dos trevos, a sorte da viagem
 
 
3.
 
levavas no bolso um limão de oiro
 
o tigre e o fruto
do pomar dos remos
 
 
(versões, talvez provisórias, para
o livro LADAILHAS)
 
 
 
emanuel jorge botelho
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989





 

04 agosto 2022

al berto / regressa do túmulo dos mares do sul

 
 
regressa do túmulo dos mares do sul
enterra os dedos na penumbra que separa o dia
da noite das cidades recorda o restolhar das serpentes
a seiva lívida do loureiro estremecendo ao sentir
o rosto da criança que foste contra o tronco
 
na tua memória já não existem paisagens de ossos
nem pássaros nem punhais de luz dentro da insónia
a criança que em ti morreu crescendo
usou sapatos com atacadores e gravata
pela primeira vez foi ao cinema sozinha
com olhar turvo de melancolia anda por aí
à procura de quem a queira
 
 
 
al berto
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989
 



03 agosto 2022

antónio pedro / distância



 

XXI
 
Sei lá das coisas perdidas!
Sei lá das coisas ganhadas!
– Sei das sombras esmaiadas,
Sempre em mim anoitecidas.
 
– Sei dos sonhos que me embalam,
E que me fazem chorar,
Sei dos mortos que me falam,
Sei das imagens do ar.
 
– Não sei de mim, nem me importa,
Nunca soube de ninguém!
Sei do luar à minha porta,
Sei d´Ela que me quer bem!
 
… O resto pouco me importa,
Que o descubra quem n’o tem
 
 
 
antónio pedro
distância 1928
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016

 


 

02 agosto 2022

yvette k. centeno / o café

 
 
 
Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e nos olhos de cada uma iam passando a sério
os ódios pequeninos quotidianos
como um enterro de terceira classe lento
e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019




 

01 agosto 2022

josé maria valverde / o céu envenenado

 
 
Meus filhos, as chuvas deste outono
vão ser, outra vez, doces e amáveis.
Mas não vos molheis muito, ninguém sabe
o que se passa com os seus átomos feridos.
Pelos vistos, a palavra do futuro
num mundo feliz e livre, obriga
agora a este veneno nas vossas medulas.
Perdoem-nos, a mim e à vossa mãe,
que nos quiséssemos quando começavam já
a ocorrer estas coisas sobre a terra.
 
 
josé maria valverde
iluminação do eu
antologia de poesia hispano-americana
tradução de daniel ferreira
contracapa
2021
 

31 julho 2022

daniel faria / do inesgotável

 
 
Abriu-se em ferida a cerca do teu corpo
E deixas vindimar-me quem quer
Que passe
 
Até o muro é sombra que não floresce
Enquanto me repetem a pergunta
 
Tu me cultivaste
Tu deixaste a geada sobrevir
 
 
 
daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003




30 julho 2022

rui lage / a demora do carteiro

 
 
Pela aurora a miríade canora
Amotina ausência geométrica,
Alfaiates sobre água inodora
Decifram-me saudade aritmética.
 
Partiu-se-me a manhã num envelope,
Extravio porventura da vigília
Do sonho anterior, parente da morte,
Afastada mas da mesma família.
 
Ir à varanda é estar só chegada
Uma carta endereçada ao peito
E quem sabe se neste perdoada.
 
Demorada a caneta na madrugada,
Com dedos ágeis e desassossegados,
Ontem, descoberto, deus jogou os dados.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 


29 julho 2022

marta navarro; paola d´agostino / medo, eu?

 
 
 
Medo, eu?
Sim, tive uma vez
 
 
Acabara de bater a meia-noite
eu voltava para casa
pela Rua do Jardim do Tabaco
e num dos armazéns uma sombra
a sombra alta e fléxil de um homem
tira a luva direita
e oferece-me a palma da mão
há pautas no lugar de linhas
 
 
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
 
 
reconheço a música
já a dancei antes
mas não quero enganar-me outra vez
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014



 

28 julho 2022

antónio manuel couto viana / café de subúrbio

  
2.
Choram para o chão os guarda-chuvas.
Chove e faz frio. O café está cheio.
Lento, descalço as luvas,
Pego num livro e leio.
 
É um livro de antiquada poesia:
Uns versos démodés, de um dandismo epocal,
Certa melancolia
E um satanismo gris de Flores do Mal.
 
(Café parisiense. Século XIX.
O absinto e a lavalliére.
Lá fora, como agora, chove, chove…
Ai, com que sugestões a inspiração me fere!)
 
Jovem, alguém, na mesa ao lado,
Espia-me a leitura, num sorriso de dó.
E fecho o livro, desencantado,
Com os olhos e os dedos já manchados de pó.
 
 
 
antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





 
 

27 julho 2022

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido

 
 
46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
 
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
 
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
 
Que longe tudo o que procuro!
 
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




26 julho 2022

saint-john perse / canção do presumido

 
 
 
Honro os vivos, tenho rosto entre vós.
E um fala à minha direita debaixo do ruído da sua alma
e o outro sobe para os navios,
o Cavaleiro ampara-se na sua lança para beber.
(Trazei para a sombra, debaixo do umbral, a cadeira pintada do
        ancião.)
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho graça entre vós.
Dizei às mulheres que alimentem,
que alimentem na terra esse estreito fio de fumo…
E o homem caminha dentro dos sonhos e dirige-se para o mar
e o fumo sobe à ponta dos promontórios.
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho pressa entre vós.
Cães, oh! meus cães, a vós assobiamos…
E a casa pejada de honrarias e o ano amarelo entre a folhagem
nada são para o coração do homem quando pensa:
todos os caminhos do mundo vêm comer-nos à mão!
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




 

25 julho 2022

josé luis piquero / no parque de campismo

 
 
A sua beleza – um escândalo
de riso e juventude –
não direi que era o único motivo.
Pois é certo talvez que nos podemos
enamorar de pormenores tolos
e queridos – dizia sempre «oh!»
antes de responder; mas além disso dançava
maravilhosamente; e depois aquela
maneira tão graciosa
de usar a madeixa sobre os olhos.
 
No parque de campismo tinha má fama,
um fox-terrier e uma irmã mais nova.
Descíamos à povoação muitas vezes
e eu pagava o cinema, os refrescos,
como um namorado feliz e complacente
que faz festas nas cabeças dos cães e das crianças.
Na noite antes de partir trocámos,
com as direcções, promessas de escrever.
 
E embora seja certo que tenho
o seu postal de Roma e várias cartas,
desse verão guardo sobretudo
a penosa impressão do fracasso cobarde,
certo desassossego que nos dias de sol
me parece vergonha.
                                      Teria sido
muito melhor ter-lhe dado um beijo naquela noite
e perder-me com honra, e não lhe escrever.
 
 
 
josé luis piquero
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997