12 junho 2022

paulo teixeira / «pátria»

 
 
À meia-noite acontecia a passagem do Equador.
A uma pergunta minha, a mãe apontava para o alto,
para onde iam os balões, cativos
de mão nenhuma, na esteira do luar.
 
Procurava no céu, o meu tecto de serviço,
o barbante, o laço de que o mundo seria
como que o presente de aniversário
por entre os falsos pendentes do céu.
 
Com a manhã desabotoando sobre nós
a sua mantilha e o topete das ondas
subindo até à coberta a manchar-me a camisa,
o Equador seria os pares arejando no salão
 
de baile os trajes de gala e a música
por que escorregara a caminho do sono.
Um rito de passagem só para adultos
enfileirando na excursão ao Ultramar:
 
o transmontano que sonha, palitando
os dentes, ser rei de castelos no Niassa
e o mancebo que vai empacotado para a guerra
vivem, enquanto o altifalante ecoa
 
o estertor de «Angola é Nossa»,
uma demissão de tudo até à vista de terra.
 
 
 
paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001




 

11 junho 2022

luís quintais / fiama

 
 
Definiríamos do mesmo modo a estranha poesia, o animal magnífico que sei habitar um dos seus bestiários. Semelhanças – um certo ar de família – eclodiriam no recíproco amplexo definicional. Como num desses exercícios em que alguém procura o entendimento que uma assembleia tem do que é uma ave. Que mapa se desenha quando alguém diz a palavra “ave”? e cúmplices – de uma amizade intransigente – são aqueles que na palavra “ave” vêem o assombro. Um pavão que desdobra a sua cauda e grita na noite? Melhor seria considerar o cisne, o enorme cisne vertical a deslizar em silêncio sobre a água. Talvez fosse assim que em acordo víssemos o mundo. Haveria o lento e imenso deslizar do cisne. Haveria o tempo em suas múltiplas, insondáveis metáforas. Haveria água. E haveria o sentimento de a profunda água ser mutável.
 
 
 
luís quintais
angst
dobra
livros cotovia
2002




10 junho 2022

camilo pessanha / san gabriel






 
I
Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que tão altas nos topes tremularam,
– Gaivotas que a voar desfaleceram.
 
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos me armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
 
San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a planície azul.
 
Vem-nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!
 
 
II
Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um montão de estrelas.
 
Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar não mais deixes de envolve-las!
 
Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,
 
Fulgem as velhas almas namoradas…
– Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.
 
 
 
camilo pessanha
clepsidra
1920



 

09 junho 2022

nuno / naqueles tempos

 
 
Naqueles tempos,
quando a rapaziada fumava menos,
quando eu ainda linguarejava o aroma flórido
do português amarelo           [O Verso é fundamentalmente silêncio.]
eu era feliz. E não sabia.               [Era essa a melhor parte.]
Capitalizava os versos
ao meu fatalismo romântico.
 
Ao hábil ritual do sono pagava os meus dias,
porque para a tristeza e para o tédio
nunca foi preciso vocação.
 
 
 
nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019




08 junho 2022

zetho cunha gonçalves / fragmentos da terra

 



 

                                          Ao Herberto Helder
                                          e ao Luís Carlos Patraquim

 
 
 
Os meus mortos deram-me versos – um rio
acampado na memória.
(Os pássaros tomam o ar do seu canto – vento,
vento espantado.)
          E se troveja,
Cobrem-se de colchas e de toalhas os espelhos
da casa;
colocam-se três montículos de cinza fresca
nos cantos interiores das portas,
e um fio de sorte, em sal grosso, ao longo do peitoril
das janelas voltadas a nascente – que se fecham,
flor do mato,
sem luz eléctrica nem água canalizada;
sem para-raios.
          Sem para-raios,
desmembram os relâmpagos, faísca
sobre faísca,
as árvores antigas da terra – que rodeiam,
estremecem – amuleto e feitiço,
como se Deus se soletrasse
na pedra inaugural do meu rosto.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
noite vertical
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021



 


07 junho 2022

eva ruivo / um recado por baixo da porta

 
 
 
                                                                  «We are the stuff
                                                 As dreams are made of, and our little life
                                                  Is rounded with a sleep».
 
                                                                    Shakespeare, The Tempest
 
 

Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícola, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga.
 
Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.

 
 
eva ruivo
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997




06 junho 2022

fiama hasse pais brandão / a casa

 
 
Sempre se conheceu o vento de Junho
nessa orla, que regougava nas esquinas
da casa à noite e nas manhãs ansiosas
em que voltava a aragem matinal
deixava irremediavelmente os frutos
a juncar a terra e os atalhos.
 
E sempre se lamentaram as velhas pancadas
do vento, no seu ritmo marítimo, a exaltação
a que nos levava, permanentes povoadores
da costa. E para lamentar dizíamos
as palavras usuais e alguns suspiros
próprios da insónia de ouvir o vento.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989



05 junho 2022

daniel faria / magoa ver a magnólia cair

 
 
7
Magoa ver a magnólia cair. Acredita.
O relâmpago vem
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros
Sem nenhum terreno pulmonar intacto
Para depois de nos olharmos um de nós dizer
Plantêmo-la aqui – aqui
É o meu pulso, a minha boca
É a retina com que procuras, é a madeira da porta
Com que te fechas em casa. Prometo-te
Eu nunca vou fechar os olhos
As mãos.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
quasi
2001




 

04 junho 2022

josé tolentino mendonça / restos de chuva

 
 
Traz um lírio seco cravado nas costas à traição
a morte do pai em certos nomes
consumida na meteórica duração
que permitia aos cigarros
a distância terrível de si mesmo
até as pequenas as mais inocentes viagens agravavam
a dor de ter um corpo um sabre herdado
sobre o monte de livros de roupas e de súplicas
 
Na fotografia com um grande sol prateado
e um caminho de cartão que depois nunca percorrera
o pai estava à sua frente e não se via
a inclinação ténue dos seus olhos
 
Agora os filmes e os remorsos ocupavam-lhe as tardes
comboios errados em que propositadamente se metia
para fugir não da sombra mas da luz calma da luz pura
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



03 junho 2022

luís miguel nava / ainda às vezes

 
 
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
 
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acaricia-los
ainda uma vez mais. fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
 
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



02 junho 2022

jabra ibrahim jabra / caçadores numa rua estreita

 
 
 
Nós, filhos do deserto, não precisamos de eufemismos. Chamamos a uma pá uma pá… as nossas histórias são histórias de pessoas verdadeiras e acontecimentos verídicos. Não temos que os registar em livros, mantemo-los vivos através da palavra, de boca em boca. Somos a nossa própria obra de arte, e o resto não importa. Conheces a história do beduíno que uma vez quis fazer uma estátua? Ele queria fazer uma estátua em honra de uma mulher falecida que ele amava, mas não tinha materiais para trabalhar. O que tinha era uma grande quantidade de tâmaras. Por isso fez a estátua com tâmaras. Na manhã seguinte, estava com tanta fome que comeu a estátua. E fez bem.
 
 
 
jabra ibrahim jabra
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022




 
 

01 junho 2022

juan manuel bonet / chuva de junho

 
 
Chuva de junho sobre as acácias,
sobre a dor de que não estejas
aqui nesta cama comigo,
sobre o céu mais cor de chumbo
que de neve. Chuva de junho, que
fica tão bem num poema,
mas na vida não.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




31 maio 2022

egito gonçalves / engarrafamento

 
 
O dia está triste,
Perséfona deve ter sido hoje forçada por Vulcano.
O inverno derrama-se na cidade
como se tivéssemos de pagar
os problemas do Inferno. Os automóveis
engarrafam o trânsito
de Santa Catarina – a rua,
não a santa
que dos gemidos de Perséfona não entende –.
Sejamos pacientes. Saboreemos
Este momento em que os motores em ralenti
Aguardam o orgasmo dos deuses.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020