23 março 2021

luís miguel nava / sem outro intuito

 
 
Atirávamos pedras
à agua para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificavam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
 

luís miguel nava
vulcão
poesia
assírio & alvim
2020




22 março 2021

fernando pinto do amaral / as time goes by

 
 
Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê – pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.
 
Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo – esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» - «a flight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.
 
 
 
 
fernando pinto do amaral
até chegar o dia
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





21 março 2021

albano martins / para um desenho de júlio

 
júlio


O lápis,
o carvão
desenham
a margem fluida
dos cabelos
e das rosas,
os espelhos,
a
nudez dos apelos
 
 
albano martins
inconcretos domínios
edições nova renascença
1980





20 março 2021

rené crevel / a ponte da morte

 
 
(…)
 
Ora uma noite, que noite?, perceberam finalmente as prostitutas que os pés não eram para torturas de veludo negro mas nudez da pele, tal qual uma nudez de areia. E assim os tacões, que andaram séculos a fazê-las cair, todos se partiram e nasceram flores de sémen nas pedras do macadame. Mentiras, porém, já não podiam tolerar-se, finas fossem como as palmilhas de corda, e a vadiagem atira as alpercatas para lá do horizonte. Explodi, ó cores. Os criminosos têm mãos azuis. E vós, raparigas, se quereis bocas vermelhas basta passar nos lábios o dedo que o derradeiro amor vos manchou. No fundo do mar ressuscitam todos os africanos crédulos que tinham querido fazer uma viagem barata e afinal morrido à boca das fornalhas. Hão-de ser peixes, não tarda, que já vão de pernas ficando transparentes. Ouvi à luz dos monstros eléctricos as suas canções sem palavra nenhuma. Carregam-lhe no umbigo, os hipocampos, como um botão de campainha eléctrica. Serão horas do chá? Nada disso. Pontos de interrogação com cabeça de cavalo, das florestas de água sobem aos olhos de sábios europeus para rebentar na sua pele terrestre. Em pleno céu o navio-fantasma escreve a sua dança. Apartam-se muros que quiseram prender os ventos do espírito. Um sol de enxofre e amor acende-se atrás das pregas de um veludo cuja placidez tem excessivo peso. Os homens de todo o mundo compreendem-se pelo nariz. Um imprevisto geyser joga à casa do diabo as pedras que tinham querido revestir o chão. Vai uma ponte do planeta minúsculo à liberdade.
 
E da ponte da morte venham ver, venham todos ver, como a cabeça se ilumina.
 
 
 
rené crevel
filhas do vento
trad. aníbal fernandes
& etc
1984




19 março 2021

eugénio de andrade / de passagem

 
 
Vinham ao fim do dia.
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.
 
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.
 
Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome.
 
 
 
eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

18 março 2021

joão miguel fernandes jorge / é uma casa…

 
 
É uma casa de parede coberta de heras e musgo
Corre um banco comprido,
são assim os bancos das aldeias do litoral.
 
É o presságio,
é o olhar sobre a planície.
 
É uma casa de chão batido.
As bilhas de barro chegam da proximidade das manhãs
sob a sombra de dunas e pinheiros.
 
Os barcos ainda não deixaram o porto.
Só depois de o sol nascer largam para ocidente.
Não temos ilusões,
 
a sombra não chega para esta memória.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




17 março 2021

carlos eurico da costa / a forma e o tempo

 
 
Para a Magda
 
 
 
I
Sobe pela noite como profundo grito
Para ver uma concha de falso fumo
Caminha nas trevas em coloridos braços
Para ver as mais ligeiras asas voltando o mundo
Sobe pela noite como arma inútil
Como insecto astro dilúvio ou fantasma
Para ver a imagem de outro dia.
 
Sim para reconhecer-te
Vem com nuvens nas espáduas
– Um rosto de ondas quentes
Rosto dos habitantes de um país que te arruína
Busto de mulher invisível pelos férteis campos.
Envolta nas colchas rubras da tua raça e rosas grenat
Surge respondendo aos gritos dos cantoneiros
Vem. Traz o branco curso lunar das tuas mãos
Para este quadro vazio onde docemente luto contra mim.
 
 
 
carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965

 



16 março 2021

charles tomlinson / o momento

 
 
Observando dois surfistas a caminho das ondas,
Flutuando as pranchas ao seu lado enquanto ao longo
Do lento declive da praia, os joelhos, depois a cintura,
Penetram naquele abraço elementar,
Suspendo a escolha na dependência deles, enquanto uma
Onda de milhentas se forma e se aproxima:
E eles estão prontos para ela, ao rodarem
Como aves que se voltam para levitar no vento:
Tudo é certeiro agora ao deslizarem lado a lado:
Pelo que invejo o jeito dos seus corpos
Para aguentar e prolongar a descida veloz
Opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem
E, em equilíbrio, como se no ar, hesitam
Numa culminação que com o mar partilham.
 
 
 
 
charles tomlinson
as escadas não têm degraus 3
trad  gualter cunha
livros cotovia
1990





 

15 março 2021

adonis / os dois poetas

 
 
Na cidade branca
Entre as migalhas de pão
Habitam dois poetas
O primeiro é negro – lua quebrada
De que as baleias procuram os restos
 
O outro é branco – tal uma criança
Dorme todas as noites
Com uma serpente negra
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





 

14 março 2021

joaquim manuel magalhães / a chuva nova canta sobre os dedos

 
 
A chuva nova canta sobre os dedos.
Ele ergue do lume, ela segura
a imaginação alagada no beiral.
O dia fica frio, não importa,
pode-se cantar, oh chuva nova,
molhado na secura desta lança
estalam nos ossos
actos despertos onde o pesar corre.
E se não corre, corre um corpo dentro dele.
 
 
joaquim manuel magalhães
dos enigmas
consequência do lugar
relógio d´água
2001




13 março 2021

fernando alves dos santos / a filha mais nova dum romano

 
 
A filha mais nova dum romano
vai para casa do seu secreto amante.
Com a mão pétrea solta os cabelos
e arruma, sem rigor, as verdades e as mentiras,
as que não lhe faltam e as que não tem:
este foi o único rasto que deixou.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





12 março 2021

henrique risques pereira / recordações

 
 
A paz inalterável do amor gratuito que ninguém quer
a saudade sempre penetrante do amigo morto que ninguém quis
os flagelos para os outros e para sempre com os outros
os nossos irmãos inexplicáveis de perfis irreconhecíveis
a caligrafia escrita no tempo
tudo isto
talvez valha qualquer verdade que te disse
e me esqueci.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





11 março 2021

antónio manuel azevedo / sem propósito de imprimir

  
 
Já todos o conhecíamos da pequena corte
tinha aquelas mãos de fazer ouro.
 
Chegava de noite e trazia os das cantigas.
Eram amigos que lhe aprendiam as falas
os encenados lugares do corpo, diabos
sedutores, fadas da pequena vida
pois que vida lhe vejo chamar.
 
Ordenava o curto prazer, a esperança
longa, ficava depois de terem ido.
 
Bebia enganos madrugada dentro
onde temor sempre atiça e o receio
melhor cabe, derivava em cerveja
a nau de seus amores. Deixava
em seus cadernos estas desventuras
farsas de segredos para dele caçarmos
para si sempre mudo.
 
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990