Caídos, acordamos sempre estranhos,
como quem dormiu ao relento,
pasto de estrelas,
e demora mais a fazer a infeliz conta.
À volta: coisas longínquas,
mordes o reflexo na maçã,
gosto que dirá à carne
o que d enoite apodreceu.
Caroços de violino, dentes
de leite, a roupa usada pelas silvas;
uma outra idade.
O que da infância a colher susteve,
como um gesto para explicar a boca.
Um interesse por mais e outra gente.
Puxar a mesa que faz a fama dos cafés
onde venham e falem como no sono,
façam a vida parecer algo menos ordinária
por uma hora ou duas.
Perceber por que a noite vê mais
que o dia,
como no vidro dos corpos cada um escolhe e protege
o seu reflexo,
fazendo de umas poucas ruas de encanto duvidoso
o que Kaváfis fez por Alexandria.
Foi fácil alguma vez?
Para mim foi. Tinha outras armas,
outra inocência.
Entendo-me com o silêncio
e a eterna demora.
Não quis o inferno na gaiola
e à janela, para assustar ou comover
a vizinhança.
Ainda prefiro o passo à palavra,
e ter-me perdido,
agarrado um erro, estúpido e doce,
grosseiro do seu bem,
sua escusada graça, como uma doida
bendição entre estes talentos.
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020