15 fevereiro 2021

claudio rodríguez / nunca será meu amigo

 
 
Nunca será meu amigo quem na Primavera
vai para o campo e esquece entre os azuis festejos
os homens que ama, e não vê o couro velho
por sob a nova pelagem, mas tu, verdadeira
 
amizade, pão celeste, tu, que no Inverno
na clara alvorada sais de casa e começas
a andar, e no nosso frio achas refúgio eterno
e na nossa seca profunda a voz das safras.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

14 fevereiro 2021

jorge de sena / baptismo

 
 
Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.
 
O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.
 
Contempla, amor, contempla.
 
E vai criando o nome que darás ao raio.
 
 
jorge de sena
coroa da terra  (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




13 fevereiro 2021

reinaldo ferreira / que estranha, a nossa verdade!

 
 
Que estranha, a nossa verdade!
Às vezes, partida a meio,
Minha ilusória unidade,
Pensando, sinto, pensei-o.
 
Mas quando penso que o penso
Estou-o pensando também.
Na vertigem, não me venço
E recuo e vou além
 
Daquilo p’ra que há defesa.
Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!
 
 
reinaldo ferreira
um voo cego a nada (Livro I)
poemas
vega
1998





 

12 fevereiro 2021

paul éluard / eu falo em sonho

 
 
Nos veios da nossa cidade
Estendiam-se os homens pobres diabos
Um rosário de amores infantis
E bem comportados como cristais
 
Sobre todos os caminhos dos nossos olhos
Pavoneavam-se mulheres sagradas
Como véus de mulheres casadas
Intactos ou remendados pesados ou luzidios
 
Estou a falar em sonho e transmito
O curto instante do grande repouso
O momento em que nada é impossível
Um pouco mais de carne e mel a mais
Estar enlevado é uma forma de realidade.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





11 fevereiro 2021

charles simic / o maluco

 
 
O mesmo floco de neve
Caiu continuamente do céu cinzento
A tarde toda,
Caía, caía
E levantava-se
Do chão,
Para voltar a cair.
Mas agora, quando a noite veio dar uma volta
Para ver o que se passa,
Mais disfarçada
E cuidadosamente.
 
  
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





10 fevereiro 2021

bernardo soares / agir é intervir. um braço que se estende ocupa espaço...

 
 
Agir é intervir. Um braço que se estende ocupa espaço e torna-se, assim, uma escultura metafísica. Nunca pude deixar de dar a este facto insignificante uma importância alada sobre o quotidiano.
 
Nunca vi em mim senão uma romaria de inconsciências para o outono das minhas intenções. As longas horas que tenho passado à beira do meu correr têm-me [...] rios sobre a existência.
 
Com os meus passos treme a luz das estrelas. Um gesto da minha mão, que me oculta a lua um momento, mostra, com este meu assombro, quanto pode realmente significar. Destes pensamentos, tornados domésticos e quotidianos ao meu escrúpulo, adveio ao meu instinto que ele naufragava no porto.
 
Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se. Inércia soube-me a santidade, e não-querer a ter bons costumes. Construí assim uma moral burguesa do pensamento, um cuidado da comodidade e da decência através do respeito do mistério. A exagerada consciência, que sempre tive, dos meus momentos, doeu-me sempre a mistério e a divino. Nunca me compreendi sobretudo quando me surpreendi a viver as inconsciências dos meus instintos e a vulgar correcção dos meus reflexos nervosos.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990
 




09 fevereiro 2021

josé miguel silva / estela funerária

 
 
Era um rapaz sem vocação para o caminho,
um arco sem arqueiro.
Chamava-se Elpenor.
 
Mais do que a palavra preocupava-o a lama
na sandália do poeta,
a mancha no tapete.
 
Movia-o a coragem de estar só,
divisão dos que celebram
o massacre da esperança.
 
Caiu a sua casa, vendeu as suas veias,
partiu para o desastre,
 chegou à nossa frente.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





08 fevereiro 2021

diogo vaz pinto / caídos, acordamos sempre estranhos

 
 
Caídos, acordamos sempre estranhos,
como quem dormiu ao relento,
pasto de estrelas,
e demora mais a fazer a infeliz conta.
 
À volta: coisas longínquas,
mordes o reflexo na maçã,
gosto que dirá à carne
o que d enoite apodreceu.
 
Caroços de violino, dentes
de leite, a roupa usada pelas silvas;
uma outra idade.
O que da infância a colher susteve,
como um gesto para explicar a boca.
 
Um interesse por mais e outra gente.
Puxar a mesa que faz a fama dos cafés
onde venham e falem como no sono,
façam a vida parecer algo menos ordinária
por uma hora ou duas.
 
Perceber por que a noite vê mais que o dia,
como no vidro dos corpos cada um escolhe e protege
o seu reflexo,
fazendo de umas poucas ruas de encanto duvidoso
o que Kaváfis fez por Alexandria.
 
Foi fácil alguma vez?
Para mim foi. Tinha outras armas,
outra inocência.
 
Entendo-me com o silêncio
e a eterna demora.
Não quis o inferno na gaiola
e à janela, para assustar ou comover
a vizinhança.
Ainda prefiro o passo à palavra,
e ter-me perdido,
agarrado um erro, estúpido e doce,
grosseiro do seu bem,
sua escusada graça, como uma doida
bendição entre estes talentos.
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





07 fevereiro 2021

claudio damiani / é uma guerra onde não se combate

 
 
É uma guerra onde não se combate,
caem bombas, e chega,
apanham-te na rua, na frutaria,
nos cinemas, nos supermercados, nos lugares de trabalho,
também em casa: entram pela janela
e explodem-te na cara.
Mesmo se construísses um bunker
cem metros debaixo da terra,
com paredes de aço, com portas de diamante,
mesmo assim as bombas haviam de te alcançar ali.
E as pessoas não vão para os refúgios,
nem ficam em casa, nem procuram esconder-se,
na verdade fazem todas as coisas como se tudo fosse normal,
saem do trabalho vão ao bar divertem-se
como se tudo fosse normal
como se tudo fosse como era dantes.
 
 
 
claudio damiani
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 



06 fevereiro 2021

nicolás arnedo marañon / amargura

 
 
Há dias em que qualquer um
deitaria fogo a uma floresta
para ver arder nela
a raiz da sua tristeza.
Dias em que qualquer um participaria
de uma guerra com a condição de merecer
a explicação da sua derrota. Dias
em que a estupidez
é uma vingança astuta,
enteada do ressentimento para consigo mesmo.
Dias em que compreendes
que é demasiado tarde
para esquivar do olho de um revólver
tanta amargura a sós.
 
 
 
nicolás arnedo marañon
(espanha, 1950-1991)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 




 

05 fevereiro 2021

fernando luís sampaio / cinco portas fechadas

 



 
1.
 
Desceu as pálpebras
Como quem sacode
Uma toalha –
Não havia vinho na mesa
E pão a servir de faqueiro.
 
 
2.
 
O teu nome aparelha
A paisagem percorrida,
Deixa entrelaçada a respiração
E mãos e boca
Desacompanham-se
Quando te vejo às compras
No mercado.
 
E não sabes que no saco
Dos legumes e fruta levas
A luz já extinta
Da minha juventude.
 
Nenhum caminho é
Para depois.
 
 
3.
 
O mundo falha em mim
Porque a noite
É maior do que a língua
Em que falas –
 
Nela misturas escórias
E o laço artilheiro
Que nos serve de fantasia.
 
 
4.
 
A casa como resto da rua – vazia.
No sentido inverso de tudo
Digo o que vai a par
De coisas imaginadas,
E se calha falar da fresca
porcelana é para reter
A luz das mãos do oleiro.
 
 
5.
 
O coração é um detrito da língua.
 
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/10
colectivo de poesia
janeiro/abril 2021




04 fevereiro 2021

miguel-manso / estoril, hotel do parque

 
(com a voz de Alexander Alekhine)
 
 
o mar vem pôr seus dedos
escuma de café
sobre a rocha e o cimento
enquanto um peixe
trépido nada por dentro de um copo
 
ouvem-se passos no corredor
uma colher sobre a toalha
reflecte um incêndio de consumadas
luminâncias
 
roda a toda a lentidão a maçaneta
e a lembrança desse abeto coberto de neve
tantos quilómetros ao fundo
amenizou o corado enxovalho deste
hesitar com o rei encurralado
 
Morte, é a tua vez de jogar
 
 
 
miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018

 




03 fevereiro 2021

paulo da costa domingos / cais das colunas

 
 
Fui ali sentir uma aragem no rosto e
pedir a mim mesmo somente um pouco
de sossego, mas eu era um peão
do poema a rugir de encontro
à muralha dos ministérios.
 
E as mulheres que ali vinham
lutavam… íó como lutavam elas!
por sapatos de salto e lingerie
para melhor saltarem no vazio
dos mistérios ocultos no rio.
 
(E não sendo assim, é cinza
que se acumula nas pestanas
de gente de barbatanas munida
para a travessia do denso
negrume das avenidas.)
 
Os meus olhos choraram sal
sobre a nefasta semente desse
trabalho assalariado, cansado,
com o rosto de encontro à pedra
como um miúdo no quarto escuro.
 
 
 
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017