26 maio 2019

antónio ramos rosa / nesse momento a sombra foi uma ferida



Nesse momento a sombra foi uma ferida
e o silêncio foi na sombra o esplendor
porque o nome que disseste era o domínio
que só no silêncio encontraria a face

Nada se abria rasgou-se lentamente
e alguém foi em mim não sei quem fui eu
e uma palavra a mais no intervalo surgiu

Não sei se se perdeu se vai perder-se
ou se para sempre o nome em nós sofria
se fomos pelo nome o lábio do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





25 maio 2019

daniel filipe / aqui nesta tarde de maio



Aqui nesta tarde de Maio
canto obcessivamente a minha pátria
Canto-a como quem ama ou sonha com o lar e refúgio
calmo braseiro fértil jardim litoral merecido
Canto-a de dentro para fora ignoto
descobri da ilha antes do mar viciosa
esperança lúbrico entardecer
Canto dizendo pátria olhos despertos
fecundado de amor
ó pátria local do único abandono
possível antes da hora
liberdade serena consentida

Canto e à minha volta o rio humano flui
adolescentes entram nos cafés
discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano
ama-se
telefona-se
murmuram-se boatos e promessas de emprego



daniel filipe
pátria lugar de exílio
editorial presença
1974






24 maio 2019

yorgos seferis / romance




XXIII

Um pouco mais
e veremos florescer as amendoeiras
os mármores brilharem ao sol
o mar a ondear

um pouco mais
para nos levantarmos um pouco mais alto


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993






23 maio 2019

juan vicente piqueras / que faço eu aqui



Eu venho de outro mundo e não entendo
como é que aqui cheguei e que pretendeis
de mim se não é amor nada espereis.

Guardo no meu coração velhas palavras
que já ninguém pronuncia touros tristes
mães que ainda não nasceram.

Eu não sou deste mundo nem de outro.
Minha voz é uma lágrima feliz.
Amanhã morrerei agradecendo
por não ter entendido este milagre.



juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019









22 maio 2019

octavio paz / dia



De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.



octavio paz
antologia poética
liberdade sob palavra (1935-1957)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







21 maio 2019

amalia bautista / duas gotas de suor




I
Há alguém no mundo, só não sei onde,
ou até sei, mas é melhor esquecer,
que me despe apenas com o olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder sob o duche.
Alguém com quem se torna inevitável
eu suar num iglu.


II
Choro quando não estás, suo contigo.
O suor e o pranto são iguais,
tenazes e salgados
tal o mar dos meus sonhos e o oceano
inabarcável dos meus pesadelos.
Não peço muito, mas gostava de
suar um pouco mais e chorar menos.



amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013





20 maio 2019

ron padgett / por um momento




É engraçado como
se te desprenderes
das coisas

elas voltam
a ti. Ou seja,
às vezes. Então

para que serve
esta generalização?
Ah, faz-te

sentir bem dizer
coisas destas
de tempos a tempos,

como se de facto
e realmente e verdadeiramente
soubesses alguma coisa!


ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018






19 maio 2019

agustina bessa-luís / poesia




A poesia, não acredito que seja esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou deliram numa meditação assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem. A poesia, vou dizer-vos o que é: eu tinha uma avó velhíssima, de quase cem anos, que perdera já a memória do presente. Não reconhecia as filhas, que a não deixavam nunca só e a serviam continuamente. Não reconhecia os lugares da casa, a porta chapeada de zinco que abria para o caminho, a outra porta pequena que abria para o quinteiro. Mas, às vezes (eu fixo-me numa ou duas em que assisti a isso), ficava atenta à chuva que caía, e ordenava, levantando a mão tão branca e ociosa, ela que trabalhara tanto a amassar a farinha e carregara tantas abadas de legumes e de feijão, e carregara ao peito os filhos também. Ela disse, olhando pela janela a eira inundada: «Vem ali o teu pai e não tem casaco. Leva-lhe um casaco para que a chuva o não molhe.» Era uma cena que ela reproduzia fielmente passados mais de quarenta anos, e isso era poesia.

A melhor impressão que a poesia nos pode dar é esta: ficar de coração vagabundo, deixando a vareja estalar na janela as asas grossas, e não dar por isso, como um cão surdo.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008






18 maio 2019

roland barthes / «mostrai-me alguém para desejar»




3.
Para te mostrar onde está o teu desejo, basta proibir-te um pouco (se é verdade que não há desejo sem proibição). X… deseja-me ali, perto dele, mas deixando-o um pouco livre: submisso, ausentando-me por vezes, mas permanecendo pouco afastado: é preciso, por um lado, que esteja presente, criando a proibição (sem a qual não haveria bom desejo), mas que também me afaste no momento em que, formado já este desejo, me arriscasse a estorvá-lo: é necessário que esteja a Mãe suficientemente boa (protectora e liberal) à volta da qual brinca a criança enquanto ela cose calmamente. Tal seria a estrutura do par «bem sucedido»: um pouco de proibição, muito jogo; designar o desejo e depois deixá-lo, à maneira destes indígenas amáveis que nos indicam o caminho certo sem, no entanto, se incomodarem em acompanhar-nos.


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017





17 maio 2019

adam zagajewski / mudança



Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.



adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017






16 maio 2019

howard altmann / a manter a postura



A história senta-se numa cadeira
de um quarto sem janelas.
De manhã procura uma porta,
à tarde dorme a sesta.
Ao bater da meia-noite,
espreguiça-se e boceja.
Está no tempo certo e fora do tempo,
sabe o seu lugar e não sabe o seu lugar.
Às vezes considera a cadeira um degrau,
às vezes acredita que a cadeira não está lá.
Vista dos cantos nunca parece a mesma.
Quando está lua cheia mantém a inteireza.
A história senta-se numa cadeira
num quarto por cima das nossas casas.



howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019





15 maio 2019

miguel filipe mochila / a vida faz-me falta para andar contente



E então é assim: a tarde passa
a língua só tangeu um par de coisas
é tão daninha a língua quando atrasa
de a deixar tão fruste assim à solta
sem ter onde aterrar
e vai planante
alta demais para largar raízes
baixa demais para ser sonora
e a aflita música nunca acorda
e então cala-se e ainda alada
podia bater as asas a vida toda
porque é ainda língua mais volátil
se volante enfim se arrasta
à pressa na prosa dos jornais…
e eu fico à escuta, aqui, parado
é triste ser-se alegre para a escrita
os dias porcos também cantam qualquer coisa
e eu queria mais era ter arte
para ouvir a valsa que desata
a dançar com o vento nos currais…
mas nunca acontece nada e então absurda
a fome já fermenta a carne fraca
ponho a mesa para o poema faz-me falta
levar um coração inteiro à boca
e então já oiço e quase existo
perto fala um vento atrás da porta
e se pergunto com que língua me vai entrar em casa
se será toda odorífera e sonora
como na velha casa a voz já morta
quando era viva a voz e a casa viva
se passará por mim rasante como a mosca
que se põe a pensar no voo e cai na sopa
se terá maneiras e timbre da rapariga
que sempre se tolhe quando pede
mais…
mas logo o sentido clama e a língua perde-se
a dizer isto e depois isto
(branco e azul não são a mesma coisa,
não é sangue o que no céu se arrasta
quando o sol se põe, etc., etc.)
e lá fora o que oiço é sempre só o que oiço
este tinir da chuva contra o copo
no parapeito a repetir já rouco
a algazarra da festa de ontem
o concerto alegre de ontem
que sendo de ontem
já não toca…
e é então que eu penso:
coisas reais nunca vêm à minha mesa
é triste este ser-se alegre e os dias cantam
e eu não ter arte, e ser já tarde
e a festa ter sido ontem e assobiante
ouvir-se o vento sobre os porcos
que belos bailam nos currais…




miguel filipe mochila 
nervo/5
colectivo de poesia
maio/agosto 2019











14 maio 2019

al berto / eras novo ainda



6

eras novo ainda
mal sabias reconhecer os teus próprios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles

esta cama de minerais secos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou

enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme

quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado… me despeço


al berto
eras novo ainda 1981/1982
o medo
assírio & alvim
1997