28 fevereiro 2019

elio pecora / atravessar a dor



Atravessar a dor
como um quarto escuro
contando os passos, os fôlegos.
Procurar no fechado
um buraco, uma fenda,
para que não seja memória
mas presença
naquela ausência de luz.

À saída saber
que é preciso voltar.
E a alegria ainda
à espera do assalto.



elio pecora
poemas escolhidos
simetrias (2007)
tradução de simoneta neto
quasi
2008








27 fevereiro 2019

ana hatherly / príncipe




Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







26 fevereiro 2019

charles simic / bar à beira da estrada




As notícias do mundo são sempre velhas.
Nunca nada de novo acontece,
Os inocentes são chacinados
Enquanto um tipo na televisão arranja desculpas

E o barman nos volta a encher os copos
A mão esquerda fechada atrás
Das costas arqueadas, mordida
Por um cão ou segurando um cassetete.

As nossas guerras, parece, não vão bem.
Um senador foi apanhado a tentar engatar
Numa casa de banho num aeroporto
E vêm aí neve e chuva.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018






25 fevereiro 2019

herberto helder / poemacto



IV
As vacas dormem, as estrelas são truculentas,
a inteligência é cruel.
Eu abro para o lado dos campos.
Vejo como estou minado por esse
puro movimento de inteligência. Porque olho,
rodo nos gonzos como para a felicidade.
Mais levantadas são as arbitrárias ervas
do que as estrelas.
Tudo dorme nas vacas.
Oh violenta inteligência onde as coisas
levitam preciosamente.
O campo bate contra mim, no ar onde elas
dormem —
vacas truculentas, estrelas
apaziguadas estrelas — e a inteligência, afinal
selvajaria celeste sobre a minha respiração.
Eu penso mudar estes campos deitados, criar
um nome para as coisas.
Onde era estábulo, na doce morfologia,
fazer
com que as estrelas mugissem e as poeiras
ressuscitassem.
Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
que minha inteligência se torne pacífica.
Unir a ferocidade da noite ao inebriado
movimento da terra.
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
Posso meter um nome na intimidade de uma coisa
e recomeçar o talento de existir.
Meto na palavra o coração carregado de uma coisa.
Eu posso modificar-me.
Ser mais alto que a corrupção.

Campos abanados pelo silêncio. Pessoa como eu
mergulhando no que é o obscuro
das vacas dormindo.
Estrelas giradas, de repente mortas
sobre mim. Ah, penso alterar tudo,
recuperar agora as colinas do mundo.
Falando de amor, eu falo
do génio destruidor. Falo que é preciso
criar a velocidade das coisas.
Que é preciso caçar flores, golpear estrelas,
meter o sono nas vacas, desentranhar-lhes
o sono,
dar o sono às estrelas.
Enlouquecer.
Que é preciso recriar o criar, meu Deus, ser truculento.
Ser simples e não o ser.
Abandonar os campos, rodopiar
a inteligência, a crueldade.
Abro a porta para não esquecer esta
absurda tarefa.
Esta tão particular necessidade.
Porque agora deixei totalmente de ser puro.
Levanto-me para dar de comer quentes
estrelas às vacas.
Sou tão puro, meu Deus, tão truculento.
É preciso principiar.

Digo baixo o nome. Corto os pés das estrelas.
Deixá-las na sua seiva estremecente.
Digo baixo que é talento envenená-las.
Minha alegria furibunda é a pureza do mundo.
E é tão belo agarrar com os ossos
que há dentro das mãos
na ponta de um nome, e desdobrá-lo.
Arrancar essa alma apertada.
Porque eu sei o estilo de uma alma
precisamente original.
Corto as estrelas das vacas.
Trago candeias para os campos extraordinários.

Porque eu bato na porta com meu júbilo furioso.
O amor acumula-se.
É para dar o ardor em doce dissipação.
Deus não sabe e sorri, esmigalhado
contra o muro humano.
Respiro, respiro. As coisas respiram.
Esta oferta masculina vocifera na treva.
Criar é delicado.
Criar é uma grande brutalidade.
Porque eu sou feliz. Durmo
na obra.
Só eu sei que a loucura minou este ser
inexplicável
que me estende nas coisas.
A loucura entrou em cada osso,
e os campos são o meu espelho.
Esta imagem perfeita arromba os espelhos.
Os nomes são loucos,
são verdadeiros.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996






24 fevereiro 2019

ricardo reis / domina ou cala. não te percas, dando




Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.

27-9-1931



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946








23 fevereiro 2019

joão esteves / a cor da esperança





A ambiguidade do silêncio é como o amarelo de um semáforo: só cai para o impedimento, nunca para a livre passagem. Nunca vi semáforos a mudarem de amarelo para verde, mas sempre de amarelo para vermelho. Ver um sim no silêncio é passar com o amarelo: coisa arriscada, às vezes até um pouco forçada, condescendência de mulher perante o desejo do homem. Já um não augura maiores possibilidades de sucesso: poderá demorar muito, mesmo até uma vida, mas quando mudar será certamente para a cor da esperança.


joão esteves
do lado de fora
editora urutau
2018 




22 fevereiro 2019

jorge roque / estes poetas eruditos




Não entendo estes poetas eruditos. Escrevem poemas com teorias da poesia, usam conceitos da retórica, hermenêutica, linguística, gostam de metaliteratura e auto-referenciação, filosofia (como não), mas apenas das mais contemporâneas referências. Concretizam com elevada abstracção temáticas abordadas em seminários e congressos, matérias complicadas que eles, fluentes, vertem em alegorias, metáforas, hipálages, sinédoques. Praticam, além disso, intertextualidade, hipertextualidade, transtextualidade (a que não gostam de chamar comércio e propaganda, embora seja disso exactamente que se trata), e cultivam aquilo a que se chama estilo, sabem vestir o manequim da literatura tão bem quanto a si mesmos. Impressionante é a cultura que exibem, cinco minutos bastam para se comprovar que leram quase todos os grandes livros (quase é aqui eufemismo ou antífrase, subtilmente litote, ironia não é decerto), isso mesmo é manifesto em todos os planos da autoria que vão da obra à entrevista, sem esquecer a rádio e a televisão e, com abnegada dedicação, as feiras e os festivais, nacionais e internacionais. Que acrescentar? Somos todos pequenos ao pé deles, não adianta iludi-lo. Aquilo é discurso de gente que sabe o que nós nem entrevemos e somente eleitos podem alcançar. Adivinha-se-lhes o contido sorriso envolvido numa calma superior, uma aura de perscrutação que o olhar profundo amplia. O enigma é que nem esse sorriso, nem essa calma, nem a perscrutação, nem o olhar, nem sobretudo o que por detrás se agita e comanda, são algumas vezes escritos. Em vez disso, lá vem outra figura de estilo, outra teoria implícita, outro reenvio. Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas cansa-me ler e não perceber, consultar dicionários, enciclopédias, monografias da especialidade, e quando por fim percebo, ou julgo que percebo, continuar sem perceber onde queriam chegar com tão elaborado dizer. Bem sei, não sou propriamente um erudito. Faltar-me-á até um pouco de ambição (dessa que o pragmatismo dirige), e perderei tempo que não devia em esforços e minúcias difíceis de explicar. Seja como for, escapa-me o sentido. Querem ser amados? É o que todos queremos. Querem ser reconhecidos? Absolutamente justo. Pergunto-me apenas se será para tanto preciso ser-se erudito? Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas a vida, estou em crer, é coisa bem mais simples. Nela escrevo a tinta morte a verdade de um só homem. Letra a letra, cada traço, cada ponto, deste rosto em que me sou.



jorge roque
o martelo
edição do autor
2012







21 fevereiro 2019

fernando assis pacheco / estrada de elvas


  

Cilindros ao longo do asfalto
esmagam a tua memória sem sentido.
É o Inverno em Borba, não recordo
quase nada de ti. Vejo o trabalho
destes homens com suas pás, seus maços,
paro um momento à beira deles
para acender um cigarro. «Compadre,
tenho um irmão na Angola!» E nada sabem
do gelo que nascia em tua boca.

Levo outro amor mais claro do que o teu.
Não te recordo já: talvez morresses
antes de ser memória, chuva, e a noite.



fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019





20 fevereiro 2019

joão luís barreto guimarães / decepção à regra




Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir
ao sítio dos outros?



joão luís barreto guimarães
luz última (2006)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019







19 fevereiro 2019

antónio franco alexandre / demoro-me no espaço




demoro-me no espaço
que as portas abrem, antes
de misturar as árvores e os

dias, as duras
maçãs redondas,
o percurso da água junto

ao teu nome incompleto,
o resto
indolor das casas

das corolas ardendo
na névoa, e
as desabridas,

as sílabas sem terra e
horizonte, as vivas.



antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983






18 fevereiro 2019

manuel de freitas / strela negra




                                           para o Rui


Sabemos há muito tempo
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.



manuel de freitas
cretcheu futebol clube
assírio & alvim
2006





17 fevereiro 2019

bernardo soares / não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio.




Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.

As minhas leituras predilectas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objectivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.

O estilo afectado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.

Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, é por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982





16 fevereiro 2019

pedro loureiro / não há absolvição







Não há absolvição
apenas a ilusão de um recomeço
a subversão do ontem
perfídia disfarçada
urdindo formações de desalojados
saciando a abstinência virulenta
cabeças que cortam cabeças
matilhas de pássaros orgânicos
causando a obstipação dos profetas



pedro loureiro
astigmatismo ou redenção
ilustrações inma serrano & josé louro
editora urutau
2019