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23 novembro 2022

jorge roque / pouca terra

 



 
I

Rosto anónimo, esbatido pelo movimento, olha para o exterior do comboio, mas não observa nada em particular, tem o olhar parado na contínua viagem ou então perscruta a noite interior, reconstitui a casa que não chegou a conhecer, cada um dos quartos, átrio, corredor, a sombra dos móveis estendida no soalho, o trabalho secreto dos ruídos contra o fundo de silêncio, percorre vagarosamente as raízes que se estendem sinuosas escuro adentro, segue-as ao correr dos dedos, o seu curso interrompe-se abruptamente, há um corte, uma falta, e ele olha-as nesse preciso momento, e o que vê são as mãos vazias. A fotografia, recortada de um convite, não tem referência ao autor ou à exposição a que pertencia. Atrás, a suportar a fotografia, o candelabro de sete braços. Atrás, a história do candelabro de sete braços. Atrás, o grito desde o primeiro homem, vibrado por vozes que se repetem e extinguem. Olha-me de cada vez que passo pela mesa do telefone. Olha-me e não me vê, esquece-me sem nunca me ter visto. Está ali para não me lembrar nada. Está ali para me esquecer de ti nos gestos que, dia a dia, te apagam.
 
 
 
jorge roque
nervo/16
colectivo de poesia
os comboios são meros pensamentos
outubro 2022
 






11 dezembro 2021

jorge roque / um exemplar falhado da espécie

 
 
I
Fascinados pela possibilidade alimentar que o extraordinário progresso criou, os povos desenvolvidos, organizados em estados, governados pela economia, administrada por uns quantos que com ela lucram, acomodam-se de boca cheia à condição de animal de criação na empresa desses quantos, cujo negócio é precisamente a classe privilegiada de que fazem parte. E se isto custa a perceber, tão perversa é esta aliança entre exploração e privilégio, o pior, está bom de ver, é o mais mau. Quero dizer: a janela que abriste, não mais poderás fechar. O frio que por ela entra é sem regresso. O homem que nesse desabrigo se ergue, não há casaco que o vista. Ínfimo diante da força surda do mundo, é nu que treme, nu que sofre, nu que desesperado grita. E nu, por fim, que morrerá sem alcançar a razão do seu grito. Lembrando o comentário do meu vizinho de baixo, proferido a respeito de pessoa alheia, mas curvado à verdade triste de ele mesmo ser um deles: coitado!



jorge roque
ladrador
averno
2012




 

22 fevereiro 2019

jorge roque / estes poetas eruditos




Não entendo estes poetas eruditos. Escrevem poemas com teorias da poesia, usam conceitos da retórica, hermenêutica, linguística, gostam de metaliteratura e auto-referenciação, filosofia (como não), mas apenas das mais contemporâneas referências. Concretizam com elevada abstracção temáticas abordadas em seminários e congressos, matérias complicadas que eles, fluentes, vertem em alegorias, metáforas, hipálages, sinédoques. Praticam, além disso, intertextualidade, hipertextualidade, transtextualidade (a que não gostam de chamar comércio e propaganda, embora seja disso exactamente que se trata), e cultivam aquilo a que se chama estilo, sabem vestir o manequim da literatura tão bem quanto a si mesmos. Impressionante é a cultura que exibem, cinco minutos bastam para se comprovar que leram quase todos os grandes livros (quase é aqui eufemismo ou antífrase, subtilmente litote, ironia não é decerto), isso mesmo é manifesto em todos os planos da autoria que vão da obra à entrevista, sem esquecer a rádio e a televisão e, com abnegada dedicação, as feiras e os festivais, nacionais e internacionais. Que acrescentar? Somos todos pequenos ao pé deles, não adianta iludi-lo. Aquilo é discurso de gente que sabe o que nós nem entrevemos e somente eleitos podem alcançar. Adivinha-se-lhes o contido sorriso envolvido numa calma superior, uma aura de perscrutação que o olhar profundo amplia. O enigma é que nem esse sorriso, nem essa calma, nem a perscrutação, nem o olhar, nem sobretudo o que por detrás se agita e comanda, são algumas vezes escritos. Em vez disso, lá vem outra figura de estilo, outra teoria implícita, outro reenvio. Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas cansa-me ler e não perceber, consultar dicionários, enciclopédias, monografias da especialidade, e quando por fim percebo, ou julgo que percebo, continuar sem perceber onde queriam chegar com tão elaborado dizer. Bem sei, não sou propriamente um erudito. Faltar-me-á até um pouco de ambição (dessa que o pragmatismo dirige), e perderei tempo que não devia em esforços e minúcias difíceis de explicar. Seja como for, escapa-me o sentido. Querem ser amados? É o que todos queremos. Querem ser reconhecidos? Absolutamente justo. Pergunto-me apenas se será para tanto preciso ser-se erudito? Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas a vida, estou em crer, é coisa bem mais simples. Nela escrevo a tinta morte a verdade de um só homem. Letra a letra, cada traço, cada ponto, deste rosto em que me sou.



jorge roque
o martelo
edição do autor
2012







06 março 2013

jorge roque / mais do que refutar



Segui o discorrer da rebuscada lógica, complexas teorias da conspiração que no seu enredo teciam guerras, tácticas, dissimulações, inimigos, em suma, alvos a abater, se ao alcance do tiro estivessem ou arma existisse que a eles se pudesse apontar. No fim, mais do que refutar, ocorreu-me apenas dizer: o mais difícil é perceber que a falta de crença nos outros atinge-nos sobretudo a nós. Somos nós que nos perdemos dos outros. Somos nós que sofremos a dor de nos faltarem. Nada disse, no entanto. No lugar onde escutavas, não o poderias ouvir.


jorge roque
uma escada que sobe pelos degraus de ti
cão celeste #2
outubro 2012


27 março 2012

jorge roque / este choro que arranha e lava




1
Tirava os quadros da parede. Voltava a pendura-los. Olhava. Mas quem lhe diz que visse. Repetia a mesma faixa do disco. Escutava. Mas quem lhe diz que ouvisse. Queria chegar a uma conclusão, isto podemos afirmar sem dúvida. Mas quem lhe diz que houvese. E quem lhe diz que fizesse diferença haver ou não haver. E quem lhe diz que todo o caminho não fosse exactamente não chegar. Ninguém lhe diz. De facto, ninguém lhe diz.

2
Era assim que agora saiam as palavras. Como pedras das mãos espantadas. Como gritos, como facas subitamente desferidas contra a página onde se calavam. Longe ia o tempo dos ofícios desesperados. Longe ia o tempo também das crenças iluminadas. As palavras, essas que sem querer continuava a escrever, já não sabia procura-las, chamar por elas, vagarosamente prendê-las no seu redil. E era sem que o esperasse mais feliz assim. Lábios com a forma da sua boca fechada.

3
Toda a vida tentara entender a vida, vivê-la como ideia que pudesse pensar. Só agora percebia que a vida era outra realidade. Uma brisa inesperada na face. Uma areia encravada sob a pálpebra. Nada que alguma vez tivesse pensado. Esta lágrima. Este choro que arranha e lava.





jorge roque
telhados de vidro nr. 12
averno
maio 2009