16 agosto 2018

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci




III

Um trapo vermelho, como o que
cinge o pescoço dos partigiani
e, junto da urna, na terra cor de cera,

dois gerânios de um vermelho diferente.
Aí estás, banido, na tua graça austera,
não caótica, registado entre os mortos

estrangeiros: As cinzas de Gramsci… Entre esperança
e velha desconfiança, aproximo-me, chegado
por acaso a esta descarnada estufa, diante

do teu túmulo, e do teu espírito que ficou
neste mundo entre os homens livres. (Ou talvez seja
uma coisa diferente, mais extasiada

e mais humilde, ébria e adolescente
simbiose de sexo e morte …)
E nesta terra onde nunca a tua paixão

teve repouso, sinto o mal que fizeste
– aqui, no sossego dos túmulos – e ao mesmo tempo
o bem – no nosso inquieto

destino – ao escreveres as derradeiras
páginas nos dias do teu assassinato.
Aqui estão, a confirmar a semente

ainda não dispersa do poder antigo,
estes mortos ligados a uma posse
que enterra nos séculos a sua iniquidade

e a sua grandeza: e ao mesmo tempo, obcecada,
a vibração de bigornas, em surdina,
sufocada e pungente – vinda do bairro

humilde – a confirmar o seu fim.
E aqui estou eu… pobre, vestido
com roupas que os pobres cobiçam em montras

de esplendor grosseiro, desbotadas
pelo lixo das ruas mais perdidas,
dos bancos dos eléctricos, que atordoaram

todo este meu dia, a mim, que cada vez mais
raros tenho ócios destes, no suplício
de me manter vivo; e se por acaso

me acontece amar o mundo, é só com violento
e ingénuo amor sensual,
tal como, confuso adolescente, noutro tempo

o odiei, quando nele me feria o mal
burguês de mim burguês: e se agora o mundo
está – contigo – dividido, não será objecto

de rancor e de desprezo quase
místico a parte que nele tem o poder?
Mas sem o teu rigor, subsisto

porque não escolho. Vivo no não querer
do pós-guerra passado: amando
o mundo que odeio – desdenhoso

e perdido na sua miséria – para obscuro escândalo
da minha consciência…




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








15 agosto 2018

gil t. sousa / desertos





1-

à água
dávamos as mãos secas

os olhos
se a beleza nos tentasse

e esperávamos




gil t. sousa
desertos










14 agosto 2018

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu



III

Espelhos: o que sois na vossa essência,
nunca ninguém saberá explica-lo.
Como os furos do crivo, sois a ausência,
do tempo a preencher cada intervalo.

Vós, que esbanjais a sala inda deserta,
vastos como florestas, quando a noite regressa…
e o lustre, como hastes múltiplas de algum gamo alerta,
vossa água inviolável atravessa.

Tanta vez estais cheios de pinturas.
Umas em vós parecem entranhadas,
as outras afastou-as a vossa timidez.

Mas a mais bela de todas as figuras
ficará lá no fundo, até nas faces recatadas
romper claro o narciso em sua nitidez.


rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017






13 agosto 2018

konstandinos kavafis / vozes




Vozes ideais e amadas
daqueles que morreram, e daqueles que são
para nós perdidos como os mortos.

Às vezes nos nossos sonhos falam;
às vezes no pensamento as ouve a mente.

E com o seu som por um momento regressam
sons da primeira poesia da nossa vida –
qual música, à noite, longínqua, que se apaga.



konstandinos kavafis
os poemas
adenda, 1.ª  (1897-1904)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005






12 agosto 2018

luiza neto jorge / recanto 7




Escolho sempre um nome que me soe amante
retrato de homem nascido
«em plena guerra», de esparsas relíquias
Incêndio e incendiador     dor e adaga dolorosa.

Ora brilho com ele em marés vivas
como a água na areia brilha assiduamente
ora nos bebem os inimigos o sangue
os pensamentos
o desvio menos exposto do desejo.

Mas ele brilha     João     em todo o corpo
Fuma, o gladiador.
Luta     amordaça     desfaz     refazamor.


Apocalipse segundo João.



luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970







11 agosto 2018

ana hatherly / 463 tisanas


  
41

Sento-me à porta de casa e penso. o céu onde começa? é imediatamente acima do chão? do outro lado da minha casa passa o rio. um pescador espera paciente enquanto outro se prepara para regressar. deito-me no chão e mergulho a cara na terra.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006









10 agosto 2018

fiama hasse pais brandão / do amor II




Ver o cortejo de cedros
e acreditar que é o cenário.
Depois estender a mão
através da longa perspectiva
oblíqua e poder palpar,
na pele, que também os cedros
têm corpos húmidos, saliva,
à espera do Amor.


fiama hasse pais brandão
as fábulas (2002)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017











09 agosto 2018

sophia de mello breyner andresen / terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.





Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa


sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015













08 agosto 2018

irene lisboa / monotonia




Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver…
Andar como os dementes pelos cantos e repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.

Monotonia. Arte, vida…
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.


irene lisboa
outono havias de vir latente triste
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991








07 agosto 2018

max porter / meninos




Há uma pena na minha almofada.

As almofadas são feitas de penas, vai dormir.

É uma pena grande, negra.

Vem deitar-te e dormir na minha cama.

Também há uma pena na tua almofada.

Deixemos as penas onde estão e
durmamos no chão.



max porter
o luto é a coisa com penas
tradução de daniel jonas
elsinore
2016







06 agosto 2018

mário-henrique leiria / poema das quatro horas




Olha, lá vem o barco
que traz sonhos e sacas de feijão…

Porque há ainda tanto frio,
agora que tudo adormeceu?
Lá em cima o violinista
toca aquela sinfonia
que nós ouvimos na tarde de 6.ª feira
e a sentinela que guarda
os Azuis-Mistério
passeia à espera da hora de almoço.
Tudo se vende e tudo se compra
ali na loja do Frio e
até há quem goste de comprar
bailados de homens que passeiam…
desde que a noite é baça,
tanto faz que a dancem
com movimentos heráldicos ou
com curvas sensitivas…
O imprescindível é sempre o imprescindível
e a dança lá está,
seja ou não verdade…
A sentinela
dança os bailados
do SETE
e tudo olha o fundo
que fica para lá dos homens…

………………………………………………………………….

Às quatro horas
parou o movimento eterno…



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








05 agosto 2018

bernardo soares / como diógenes a alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol.



Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho (...)

Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco uma linha recta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha recta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejo sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.

Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma a outra, ou foi a terceira que tardou.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






04 agosto 2018

al berto / salsugem




6
morriam longas cobras de água verde a estibordo dos lábios
e o nácar dos dentes fendia a geada
navegávamos sem bússola um dentro do outro
com o peso das tristes asas do albatroz no coração

passávamos os dias espremendo polposos frutos
beijos nos músculos tatuados de pin-ups dolorosas virgens
araras panteras brancas mapas geometrias misteriosas
riscavam-se os punhos com silêncios inexplicáveis
não me lembro se alguém gritou e morreu
percorríamos o areal
onde esquecemos os desejos dados-à-costa

a pouco e pouco habituei-me à solidão deste quadrante
sem destino
o fogo devorou as esperanças duma possível felicidade
espero com as aves uma mudança brusca de tempo
ou o regresso às simples profecias

mas ainda estou vivo… acordado
para rasgar o calor tremendo das cinzas
deixo a pouca vida que me resta
emaranhar-se nas quentes lágrimas das ilhas


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997