09 janeiro 2017

antónio franco alexandre / fosses tu deus



Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



08 janeiro 2017

teixeira de pascoaes / canção da névoa




Tristezas leva-as o vento;
Vão no vento; andam no ar...
Anda a espuma à tona de água
E à flor da noite o luar...

Vindes dum peito que sofre?
De uma folha a estiolar?
Donde vindes, donde vindes,
Tristezas que andais no ar?

Eflúvios, emanações,
Saídas da terra e do mar,
Sois nevoeiros de lágrimas
Que o vento espalha, no ar...

Suspiros brandos e leves
De avezinhas a expirar;
Ermas sombras de canções
Que ficaram por cantar!

Brancas tristezas subindo
Das fontes, que vão secar!
E das sombras que, à noitinha,
Ouve a gente murmurar.

Saudades, melancolias,
Que o Poeta vai aspirar...
Melancolias e mágoas,
Que são almas a voar.

E o Poeta solitário
Fica a cismar, a cismar...
Todo embebido em tristezas,
Levadas na onda do ar...

E o Poeta se transfigura,
É a voz do mundo a falar!
E aquela voz também vai
No vento que anda no ar...


teixeira de pascoaes
as sombras




07 janeiro 2017

antónio ramos rosa / estou vivo e escrevo sol


ao Ruy Belo


Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001


06 janeiro 2017

paul éluard / estações



I
O centro do mundo está em toda a parte e em nós

Uma rua ofereceu-se ao sol
Onde se situava ela e qual a sua importância
Na luz suplicante
Do inverno nascido de um amor menor

Do inverno uma criança coisa de nada
Com o seu séquito de andrajos
Com o seu cortejo de pavores
E de pés frios caminhando sobre túmulos

No deserto tépido da rua.


II
O centro do mundo está em nós e em toda a parte

E de súbito a terra bem-vinda
Foi uma rosácea de sorte
Visível com espelhos louros
Em que tudo cantava com a rosa na mão

À folha verde e ao metal branco
Pegajoso de embriaguez e de calor
Ouro sim ouro para brotar do chão
Debaixo da imensa mole humana

Aos pés da vida opressiva e boa


paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



05 janeiro 2017

luís miguel nava / na pele




O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
ao longo das falésias, o que sempre
me traz a exaltação desses rapazes que circulam
por Lisboa no verão.
O mar está-lhes na pele. Partilho
com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas
a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
da pedra onde o mar vem largar a pele.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
como alguém disse
publicações dom quixote
2002




04 janeiro 2017

paul auster / desenterrar



I
De par com as tuas cinzas, aqueles
ainda mal acabados de escrever, suprimindo
a ode, as atiçadas raízes, a estraneidade
do olhar – com mãos embrutecidas, arrastaram-te
para a cidade, apertaram-te
neste laço de gíria, e nada
te ofertaram. A tua tinta aprendeu
a violência das paredes. Banida,
mas sempre rumo à fraternal
quietude do coração, revolves os seixos
da velada terra, e compões o teu lugar
por entre os lobos. Cada sílaba
é um trabalho de sabotagem.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



03 janeiro 2017

manuel de freitas / duas vezes nada



É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002



02 janeiro 2017

arsenii tarkovskii / rios palpitantes por dentro do cristal



Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
-  Deus do céu! -, tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se forma límpido, laminar e firme.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




01 janeiro 2017

herberto helder / o poema



     V

     Existia alguma coisa para denominar no alto desta sombria
     masculinidade. Era talvez um cego escorrer
     de sangue pelos anéis e flores do corpo.
     Sei unicamente que era a força da tristeza, ou a força
     da alegria da minha vida.

     Havia também outra coisa a que se deveria dar
     um nome belo e lento. Algo que se cercava de lágrimas
     como uma árvore se vai cercando de folhas
     inúmeras. Tudo isso começava
     a aparecer nas vozes e inspirações como uma ardente
     confusão. Era primeiro uma virtude.
     Depois, este vagaroso acender
     da noite. O sangue despenhava-se
     nas lagoas e grutas da carne. Hoje eu sabia
     que era a tristeza, a tristeza — um poder
     mais jovem que os demais. Esquecia de novo os nomes,
     e todo me circundava de uma torrente
     silenciosa, de uma cítara fortemente anunciadora.

     Nunca se deve dizer que um rosto perde
     as suas brasas quando se inclina sobre a penumbra
     de uma fonte, sobre um instrumento rápido.
     Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se
     enlouquecer eternamente. Ou porque a colher
     pode ligar a terra à violência do espírito.
     — Lá estariam sempre as grandes arcadas de fogo,
     as portas, a loucura das pontes celestes
     aonde a invenção chega como um frio arrebatamento.
     Havia essa espécie de vocação implorativa, a doçura
     do corpo subtilmente preso por crateras e picos
     ao tumulto das sombras.

     Eu abaixava-me e tomava como nos braços
     essa criança ignota.
     E porões enchiam-se de água, eu seria em breve
     um afogado. Tudo me inspirava
     nessa noite abrupta, entre o começo e o fim
     do mundo. Como pode um coração absorver
     tanta matéria, tanta inocência da terra?
     Se era uma criança, sua vida circulava
     indecisamente; se eram os mortos,
     a distância tornava-se infinita. Apenas
     a minha força se dobrava um pouco, e um novo calor
     corria nas palavras adormecidas
     e degelava as mãos que se cobriam
     de um sentido impenetrável,

     — Essa forma amparava-se no sexo repleto
     de espinhos e espelhos,
     e era uma espécie de retrato sem névoas, um eixo, um grito,
     uma louca morte
     onde começassem a girar as inspirações misteriosas.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996





31 dezembro 2016

jean genet / por que dançar esta noite?



Por que dançar esta noite? Saltar,
pular no arame debaixo dos projectores a oito metros do tapete?
Razão, terás tu que encontrá-la. Ao mesmo tempo caça e cata dor,
esta noite saíste do covil, foges de ti próprio
e andas à tua procura.
Onde estavas antes de apareceres na pista?
Tristemente disperso nos teus gestos quotidianos,
não existias. À luz experimentas a necessidade de te reconstituíres.
Todas as noites vais correr só para ti,
ficar contorcido no arame e retorcido numa busca do ser harmonioso,
disperso e extraviado num matagal de gestos familiares:
atar o sapato, assoar, coçar, comprar sabão...
Um só instante vais aproximar-te de ti e deitar a mão a ti próprio.
Na mesma solidão mortal e branca, sempre.

Mas o teu arame — e lá volto eu –
não esqueças nunca que às virtudes dele deves a graça.
Por certo a que tens, mas para descobrir e exibir as dele.
O jogo nem um nem outro favorece: brinca tu com o arame,
irrita-o com o tornozelo, surpreende-o com o calcanhar.
Não temas a crueldade que há entre os dois: cortante,
que vai fazer-te cintilar. E vê lá bem,
não abdiques nunca da mais requintada cortesia.
Faz-te consciente daqueles contra quem triunfarás,
contra nós, sim, mas... através de uma odiosa dança.
Não se é artista sem uma grande infelicidade de permeio.
De ódio contra qual deus? E vencê-lo para quê?
A caça no arame, a perseguição à tua imagem e
essas flechas que lhe espetas sem chegar a tocar-lhe e
a ferem e fazem cintilar, é realmente uma festa.
E será a Festa se acertares na imagem.

          (...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984




30 dezembro 2016

franco loi / eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,



Eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,
o mercador de maravilhas e dos caroços de pêssego,
o que compra a amargura dos humildes
e doce a espalha limpa como um pássaro voando...
Eu vi dos pobres a cidade dos mortos,
os plátanos ali, especados, com os homens sós
que gritavam com os pés e cuja cabeça à banda
cortava oscilando a corda nos nós do tronco,
vi os campos de erva, onde os braços calcavam
com fúria a terra, como se catarrentos
quisessem soterrar-se, ou desesperados
pôr-se de cu para aquele céu... Oh, escarpas
de fuzilados, exangues, ar de tragédia,
freixos selvagens que já não tendes céu, mendigos de que sopros!
Vi gente gotejando, em fuga em ofegante,
e aquelas sirenes, atrás, com as mãos a gritar:
foge, foge, corre!, vem por aí abaixo
uma porradeira de bombas, que metralham e ceifam,
e os rapazes que escarvam, cães como bandos de rapazes,
e mães que berram - Meninos, quem pode fugir do vento?...
Ah, se eu venho de longe... Péssima raça!
Quando penso que morrer não é nada,
que temos medos de uma sombra, que louca
é esta nossa vida, e que os homens parecem caminhar...
Caminhar? Ou é este empurrão do ar que os colhe
e os arrasta pra onde quer, para onde vão finar-se?


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993







29 dezembro 2016

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





28 dezembro 2016

antónio pedro / poema inicial



I
A espuma do mar
Arrenda-me a sombra
Na areia molhada.
Ecoa nos gritos
Dos pássaros soltos
A voz que afogaram.
Quem mede os segredos
Da mata em que dói
Nasceram-me os ramos
No corpo que a é?

Assim porque sou
Princípio do mundo
Na tábua do barco
No seixo da roda
Na pedra do barro
No ovo da angústia
No parto dos peixes
Vivíparos e ainda
Na primeira mamada
Do cabrito ali

A minha sede antiga
É como se fosse
Pela primeira vez.


antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998