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30 dezembro 2016

franco loi / eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,



Eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,
o mercador de maravilhas e dos caroços de pêssego,
o que compra a amargura dos humildes
e doce a espalha limpa como um pássaro voando...
Eu vi dos pobres a cidade dos mortos,
os plátanos ali, especados, com os homens sós
que gritavam com os pés e cuja cabeça à banda
cortava oscilando a corda nos nós do tronco,
vi os campos de erva, onde os braços calcavam
com fúria a terra, como se catarrentos
quisessem soterrar-se, ou desesperados
pôr-se de cu para aquele céu... Oh, escarpas
de fuzilados, exangues, ar de tragédia,
freixos selvagens que já não tendes céu, mendigos de que sopros!
Vi gente gotejando, em fuga em ofegante,
e aquelas sirenes, atrás, com as mãos a gritar:
foge, foge, corre!, vem por aí abaixo
uma porradeira de bombas, que metralham e ceifam,
e os rapazes que escarvam, cães como bandos de rapazes,
e mães que berram - Meninos, quem pode fugir do vento?...
Ah, se eu venho de longe... Péssima raça!
Quando penso que morrer não é nada,
que temos medos de uma sombra, que louca
é esta nossa vida, e que os homens parecem caminhar...
Caminhar? Ou é este empurrão do ar que os colhe
e os arrasta pra onde quer, para onde vão finar-se?


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993







02 janeiro 2016

franco loi / dióspiros, frutos de deus sobre manteiga de neve,



Dióspiros, frutos de Deus sobre manteiga de neve,
como maçãs-laranjas que um envidraçado ar de pensamentos
baloiça no mar de nuvens dos telhados;
e os peixinhos dourados trocam palavras vãs
presos na turvação do tanque;
e o Bobi, negro cachorro, cão nojento
que lambe merda e vai, como os cegos
que te passam rente com o frio dos mortos;
e, de lazeira, a tartaruga
procura, esgravatando a terra,
a flor do paraíso, a hortênsia, as libélulas
que voam feitas prata para o azedo da uva
ao longo do muro encantado com o sol;
e Meri, horizonte feito de tristeza,
a senhora dos cães, rapariguinha que, do céu
ciosa, roubava o frio de janeiro
às estrelas de pedra sob os dióspiros luarentos;
tu, Meri,
que uma criada deu à luz,
pássaro de esconder, vestido que passava
entre as grades e as glicínias, olhos de sol,
e a sombra do jardim parecia ela,
passarinho,
envelhecida por três metros de nuvens entrevistos
no gelo das vidraças, pensamentos de chaminés,
a fronte que esquecia os chamamentos
ao sonhar-se, o bando de garotos pelas ruas de neve;
Meri das flores,
mestra de garotada,
aparição de amor que, aos dezoito anos,
com teus silêncios e teu frio saber,
num morrer precipitado e ansioso nos deixaste
a nós, fátuos, a nós, fanfarrões e malacabados como tu,
quando, sobre o longínquo alcatrão de uma estrada qualquer,
o céu era mortalha de fingidas nuvens.


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993




03 dezembro 2015

franco loi / mariuccia


Mariuccia,
as primeiras maminhas da minha vida,
sorriso maroto entre as grades da varanda,
tu, de ébano,
olhos de fuinha , a rapariga de sempre,
que sob as franjas da tolha verde, a ternura,
ali, debaixo de uma mesa, como gatos abraçados,
entre os sapatos das mães e das velhas bichanando,
ali, como uma flor em botão que me beijasse,
me oferecia, qual violeta, o belo veludo da sua graça,
a mim, o seu miúdo, que arrastava
com a mãozinha magra para o sótão,
e a voz que nos chamava para o anoitecer...
oh, as tardes da rua Cardano,
pátios de neblina,
sopros de bruma que vêm dos canais,
o Ernesto que aos sessenta já chorava pela mãe,
para ela que com a escova lhe fustigava a cara,
ele, sapateiro, embebedava-se com o homem das bicicletas,
e ela, velha, paralítica rameira,
grita: de joelhos!
de joelhos, seu malandro!
não te faças de novas, não mereces o pão!
e em baixo, das retretes, os resmungões sibilavam:
sacana do Ernesto, como um cacho!
e nós que com os garotos vozeávamos:
o Gigi! o Gigi!
passarinhávamos céleres,
e era o vendedor de castanhada que chamava do carrinho
por mim e pela Mariuccia, e pelos mundos secretos.



franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993



23 dezembro 2012

franco loi / eu era outro e via-me a morrer



Eu era outro e via-me a morrer
como a dormir se vê a sombra.
Põe medo a morte dentro do coração
e foge atrás de um espelho, e lá estou eu.
Vejo a vida e a vontade de morrer:
façam o que quiserem, mas usai-me!
Chamai-me, chamai-me, não me deixes dormir,
pois sinto que esqueço a minha história
e me torno o homem do meu morrer...
Amor que vem a mim da luz da lua,
alegria de água que passa entre os vivos!




franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993

01 abril 2012

franco loi / oh, quanta gente que, morta por aí,





Oh, quanta gente que, morta por aí,
passou por ela a história sem a ver,
sem ver o frio de esperança generosa
de que a minha própria sombra seja maior que ela,
oh, quanta gente que, morta por aí,
parece à espera e já não espera mais;
e passa o ar e afasta-se para longe,
lá onde se imagina estar a vida
que se esconde, mas que regressará.





franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993




21 janeiro 2012

franco loi /a tarde cai e nós aqui à espera.

   



A tarde cai e nós aqui à espera.
Estamos aqui á escuta. Mas que esperamos nós?
Que antigas são as casas! Como é distante
a cidade, esses rumores, a lua...
No desfazer da tarde o ar suspende-se
e como que se esconde no reflexo das nuvens
o que entre nós perpassa ao olhar as caras...
O poeta pensa e, débil, sua voz
fala de qualquer coisa que já foi.
Mas que esperamos nós? Porque estamos à escuta?
Redonda, a lua sobre Milão se mira
e grava memória o ar sobre as nossas faces.




franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993









01 outubro 2011

franco loi / sou filho de schönberg e do maestro mahler




Non vi innamorate non
credete al cuore



Sou filho de Schönberg e do maestro Mahler,
do diapasão sinfónico e diafónico,
sou o tetracorde do inferno e sou o pentacorde,
sou como a borboleta que procura
entre as ervas uma flor rara e belíssima para se apaixonar;
e sete, setenta vezes sete, infinito,
em terra, em céu, até onde pode chegar o pensamento,
é o campo de árvores e de gritos,
e timbres, perdidos sabores: como a chuva
que parece cair mas sobe,
e se alarga afundando as raízes, grave,
e, suspirando ao sol, faz caminhar
as nuvens e penetra talvez no divino
para além do universo onde
ao celeste da atmosfera parece gritar obscuramente
os esquecimentos e dissonâncias, longínqua piedade,
e alegria, indiferenças, dores, doces apelos das estrelas,
e, como diz o meu mestre, escorre
a doce matemática apaixonante
da melodia que dá a intensidade...
Meu Schönberg, meu Berg, gente que se arrisca,
que pela teia da música se aventura
procurando tacteá-la, desenleia, esquadrinha,
mistura às apalpadelas na ânsia de encontrar...
- encontrar o quê? a história de um dia alegre?
a hipocrisia de um velho que deixou de amar?
ou o pensativo planar de uma asa branca
sobre a amendoeira rescendendo a sonho?
ou o morrer de amor da juventude
que canta e passa, breve, como esquecimento?
ou a tristeza do homem que envelhece
e para quem todos os dias são para poupar?
encontrar aquelas belas canções dos que morreram?
a voz das sombras? o ressoar do sopro?
aquele som do ar e da respiração
a que chamamos espiritual, e que te parece arder?
talvez saber os nomes da consciência,
o sentido daqueles suspiros, deste brumoso caminhar
entre homens que parecem não ter cara
e máquinas com pressa de matar,
o sentido deste infeliz tormento
feito de indolência, de um dizer sem falar,
de um aipo de agonia que se embrulha no desconforto,
que sabe de roer mas não como acabar? -
... gente que chama experiência à fantasia
e que por entre os erros parece encontrar-se,
que, como rouxinol, na lua nova,
ao baloiçar de um sino quer cantar,
essa gente que ri e se diverte, se entrega à loucura
e, enganada ou não, brinca no que faz...
Amigos, mestres, marceneiros de harmónicas,
é a vida que o órgão quer fazer soar!
E a teoria é como uma caixinha
onde estão fechados os ossos que não cantam.






franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993