16 janeiro 2016

antónio josé forte / poema



Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva de uma estrela

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar


antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958



15 janeiro 2016

vasco gato / depois do frio, ainda


três.

ela traz na mão direita as ondas que o mar não quis:
enterra-as nos meus poemas, diz-me que assim
eu posso lembrar a mão que ficou na areia, pequena.

o deserto procura-nos. há um caminho que é só morte.

ela fica junto de mim, mil lágrimas e os meus olhos
começarão a ver, ela diz-me que vai ser assim.



vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000




14 janeiro 2016

leopoldo maría panero / mutação de bataille


VIII
PALIMPSESTOS
MUTAÇÃO DE BATAILLE

(De L’Archangélique)


Eu sonhei em tocar a tristeza viscosa do mundo
na desencantada orla de um lamaçal absurdo
eu sonhei uma água turva onde reencontraria
o caminho perdido do teu ânus profundo;
eu senti nas minhas mãos um animal imundo
que na noite fugira de uma espantosa selva
selvagem como o vento, como o negro buraco
do teu corpo que me faz sonhar
eu sonhei nas minhas mãos um animal imundo
e soube que era o mal de que tu morrerás
e invoco-o rindo-me da dor do mundo.
Uma luz demente, uma luz que magoa
só em mim encontra o cadáver do teu riso
do teu riso que preserva a tua longa nudez
e o vento descobre a nossa morte, semelhante
a esse buraco imundo que eu quero beijar: um imenso
resplendor
me iluminará então
e eu vi a tua dor como uma caridade
irradiando na noite a tua forma ampla e imensa
o grito do túmulo que é a tua infinitude
e eu vi a tua dor
como uma caridade, como se alguém deixasse suavemente
um olho na mão branca que um mendigo lhe estende.



      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




13 janeiro 2016

fiama hasse pais brandão / a folha viva



Mantêm-se o ramo vivo
da verdura. A folha
cai, repõe-se, a copa reverdece,
o seu volume sobe.
Nada é efémero
sob o tom da luz. Tudo
retoma a folha, tem recorte,
o seu pecíolo verde ou outra forma.

Cai a folhagem, tinge todo o chão.
Ou, possuída a terra, ela persiste
e é perene a queda
de uma árvore,
depois o surto,
e tudo convergente, se mantém.



fiama hasse pais brandão
o texto de João zorro
pungente o verde
editorial inova
1974





12 janeiro 2016

marcos tramón / desalojamento



Hoje amanheci triste. Nem sequer
a manhã, insensível, me comove.
Hoje amanheci comigo ao lado, triste,
feridamente triste,
como os desalojados.
Como um homem e uma mulher
de incontáveis invernos,
que obrigados se viram com ofertas
ruins a abandonar os seus deuses lares
(o sol de muitos anos
atrás das mesmas janelas;
lembranças como pássaros
que não envelhecem, ferem
os seus cantos ainda;
uma vida, de súbito, à intempérie).
Como os desalojados,
como mulher e homem
que despertassem surpreendidos, sós,
numa manhã mais de sol exagerado.


marcos tramón
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




11 janeiro 2016

marin sorescu / olha...



Olha, as coisas
Estão cortadas ao meio,
De um lado elas
Do outro o seu nome.

Há um vasto espaço entre elas,
Espaço para correr,
Para a vida.

Olha, tu estás cortado ao meio.
De um lado tu,
Do outro o teu nome.

Não sentes às vezes ou no sonho
Ou à margem do sonho,
Que na tua fronte
Assentam outros pensamentos,
Sobre as tuas mãos
Outras mãos?

Só por um instante foste compreendido
Fazendo o teu nome
Atravessar o teu corpo,
De um modo sonoro e doloroso,
Como o badalo de bronze
Através do vazio do sino.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997





10 janeiro 2016

cristovam pavia / nocturno


Dorme no jardim público
Cheio de noite e de sonho
E o banco abandonado
É uma varanda para as estrelas…

A vida passa por ali
Como uma lágrima num rosto…
E os meninos vagabundos
Também não reparam nele.


cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010



09 janeiro 2016

tiago fabris rendelli / para leopoldo maría panero



eletrochoques ritmam a melodia,
já não tenho mais corpo,
meus olhos se fundiram
para além das janelas
sujas do teu quarto.
escuto o teu grito de borracha abafado,
enquanto teu cérebro sofre da sanidade
de mil elefantes.
tua verdade não é o mijo na calça,
nem o olhar mirando o nada,
nem os teus delírios de infância
amaldiçoados por cachorros loucos.
Mondragón!
Mondragón!
Mondragón!
ecoa o grunhido desse bicho
que engole verdade
e caga demência.
o real habita uma criança morta,
se vê nos reflexos dos retratos
daqueles que não lembramos mais,
está impressa com sangue nos mapas
que apontam continentes desaparecidos.
pela loucura daqueles que se arrependem do suicídio.
pela insanidade dos que ensinam a liberdade no cárcere.
pelo amor que coloca secura nas flores.
pelo teu cigarro aceso e teu fumar de estrelas.
por tudo isso e mais,
grito o teu nome:
Leopoldo!
Leopoldo!
Leopoldo!
tua lucidez
é uma serpente com asas
a voar pelos séculos.


tiago fabris rendelli




08 janeiro 2016

manuel antónio pina / os tempos não



Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço  no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.


manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982



07 janeiro 2016

a. m. pires cabral / epígrafe



Se algum dia alguém chegar a ler
este dizer agreste,
provavelmente pensará: que pálida lanterna;
não é deste metal que a luz é feita.

Calma. Pois não.

Mas quem assiduamente
visita os desvãos onde a noite se acoita
não precisa de mais que o clarão desta treva,
desta cegueira sem cão se sem bengala,
para no escuro rasgar o seu caminho
e nele ir progredindo às arrecuas.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




06 janeiro 2016

manuel de freitas / largo do peneireiro


                                            [para a Inês]

  
Tudo se perde, claro. Mas lembrarei
seguramente os olhos vermelhos
de um gato de Alfama e todos os poemas
que não escrevi contra mim próprio,
naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.

Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas
num diálogo de guitarras desatentas.
Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,
e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite
pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,

quando se percebe o desabrigo, a difícil
pertença a esta espécie de gente,
comunidade de louco deserdados a que
o empregado, de bigode, chamou
«o pessoal da bebedeira». Porque isto
que não passa, sabemo-lo bem, é a vida

ou a morte, uma perda que dura
e que não se apaga assim, sob um cerco
de navalhas ou de inúteis, vigorosos
sentimentos. Por exemplo o amor,
essa estranha mistura de angústia, desejo
e novamente angústia. O não apenas sexo
de adormecer em braços reais
que afastem para sempre o mundo.

Mas acabo por subir cambaleante as escadas
à hora em que o vizinho de baixo
se prepara para ser uma pessoa altamente
honrada, no talho de bairro
que lhe dá sentido aos dias.

E não é dor, nem prazer, nem
ressentimento o que um corpo
sente, às seis da manhã, prostrado
na lama involuntária destes versos.
Antes um vazio imperfeito, uma
ferida sem lugar que nenhuns lábios,
sequer os teus, saberiam calar.

Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.
Não esperes grande coisa da felicidade.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




05 janeiro 2016

manuel a. domingos / soneto



Nunca procurei
enganar a vida
e não vou dizer
que ela me enganou

Não: a vida tem sido
honesta comigo
O problema é
dar-lhe carta branca

Pois a minha precariedade
é – acima de
tudo – existencial

Contra ela não há
contrato ou vínculo
que me valha



manuel a. domingos
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015




04 janeiro 2016

sylvia plath / tu és



Como um palhaço, contentíssimo, mãos no chão,
Pés para as estrelas, cabeça como a lua,
Com guelras como os peixes. O uso comum de uma prática
Nos polegares apoiado à maneira de um dodó.
Enrolado em ti próprio como numa bobine,
A perscrutar o escuro como faz a coruja.
Calado como um nabo desde o Quatro
De Julho até ao dia das Mentiras,
Ó elevador das alturas, meu tesouro.

Esparso como o nevoeiro e esperado como o correio.
De mais longe do que a Austrália.
Atlas de costas curvadas, o nosso camarão mais viajado.
Recolhido como uma flor em botão e à vontade
Como sardinha em lata.
Um cesto de enguias ondeantes.
Saltitante como feijão mexicano.
Certo, tendo razão como uma conta bem feita.
Uma ardósia limpa e o teu rosto nela.

  

sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996